sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Uma relíquia na torre


Alessandro Faleiro Marques

Nestes cem anos, a Matriz de Nossa Senhora do Carmo tem sido um cenário privilegiado onde Deus e homens se escutam. As largas paredes do imponente templo de Carmo do Cajuru, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, são testemunhas de quantos ali se fizeram santos por meio do Evangelho ecoado pelas vozes de presbíteros, da rústica doçura do coral litúrgico, do perfume solene do incenso e da luz devota das velas.

Poucos, porém, conhecem um segredo marcado na torre. Em um canto privado da luz do sol e dos olhares piedosos dos cajuruenses, há uma relíquia de um desses santos formados em nossa paróquia-mãe. Uma lembrança deixada em 1980 por um humilde jovem está grafada na parede interna voltada para o sudoeste, na altura do telhado da nave central. Nesse lugar, lê-se “Gerson”, simplesmente.

Algumas vezes, tive o privilégio de subir pela torre, chegar perto dos sinos e contemplar, do alto, a vista da cidade. Maior honra, contudo, foi ver a lembrança deixada por aquele jovem operário, ajudante de meu pai e amigo de toda a minha família. Uma espécie de pequeno oratório nosso dentro da igreja centenária.

Esse rapaz, há muito “canonizado” por nós, trabalhou como servente de pintor na reforma da matriz, promovida pelo cônego João Parreiras Villaça bem no final da década de 1970. Era alegre, de voz suave, corpo magro, pele e cabelos claros.

Uma tragédia, contudo, tornou nublado um dia de folga. Uma arma de chumbinhos, disparada acidentalmente ao cair no chão, levou o sofrimento ao moço, na época, com 17 anos. Ele lutou pela vida durante muitos dias no Hospital São João de Deus, em Divinópolis. Jesus o quis presente na reforma do templo físico e também na sua própria Paixão divina. Gerson não carregava mais escadas ou latas de tinta, mas o próprio peso da Cruz. Num úmido início de noite de outubro de 1981, com intensa agonia, ele nos deixou. Tudo estava consumado.

A agonia de Gerson Santil, filho de família bondosa do Bairro Bonfim, deixou muito comovidos a nós e ao próprio cônego João. Lembro-me do célebre pároco presidindo a missa de corpo presente dentro daquele templo que o trabalhador pouco antes ajudara a embelezar. Um homem canonizado pelo povo saudava outro santo do próprio povo. Uma história grandiosa, mas silenciosa, como são muitos dos mistérios de Deus. Hoje, lá na torre, na singeleza de umas pinceladas, está o nome de um anjo, profeticamente representando outros milhares de anônimos que, rodeados por essas paredes, salvaram-se para Deus.

Um dia, algum desavisado pintor apagará a inscrição, até há pouco respeitada pelos colegas que participaram das reformas nas décadas seguintes. Outra profecia de um evangelho do cotidiano: as coisas deste mundo passam, mas não o nome dos que vivem em algum lugar do coração de Cristo, o Templo Vivo.

* Dedico esse texto à família e amigos de Gerson, e aos trabalhadores de Carmo do Cajuru, meus conterrâneos.



Compus esse texto para o concurso do centenário da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, celebrado no dia 15 de setembro de 2012, em Carmo do Cajuru-MG. Nesse templo, eu e muitos de meus parentes atuais e ancestrais fomos batizados. Ouvi dizer que fui desclassificado porque eu falava somente da torre e não do templo (rsrsrs). Acho que, com o dedo errado, mostrei a Lua. Seja como for, viva minha terra!


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