Alessandro Faleiro Marques*
Já
estou avisando: se acontecer um barulho perto de mim e se houver anjos
voando sobre minha cabeça, “subindo e descendo em todas as direções”,
vou tirar do bolso meu bodoque (ou estilingue, como queira) e mandarei
pedra para acertar bem no meio das asinhas deles. Não quero “anjos
voando neste lugar”, desejo anjos com os pés no chão.
Há poucos
dias, ao procurar o posto de saúde de meu bairro para me vacinar contra a
tal gripe H1N1, dei-me com a cara no portão. Apesar de ser pouco mais
de 16 horas, o porteiro da unidade fechou as portas para quatro
mulheres, meia dúzia de crianças, para mim e meu pai. Minutos antes, um
senhor agredido verbalmente pelo porteiro foi embora, ameaçando chamar a
imprensa. Disseram estar lotado o posto, não podendo entrar mais
ninguém. Na faixa colocada no muro e retirada minutos mais tarde, estava
claro: atendimento das 8h às 17h. Quando dei por mim, estava acabando
de convencer à atendente da Polícia que os militares deveriam nos
ajudar.
Depois da chegada dos PMs, fomos vacinados (o posto
estava vazio). Para minha desagradabilíssima surpresa, dos poucos
servidores públicos que lá estavam, alguns frequentavam a paróquia, cuja
matriz está bem em frente ao centro de saúde. Quando me reconheceram
como um membro da comunidade religiosa, esticaram sorrisos e adocicaram a
voz. Seguindo o costume interiorano, cumprimentei-os, mas assumo: não
fiz a menor força de colocar tempero na resposta. Eles, e não o governo,
estavam envolvidos em dificultar o nosso acesso ao medicamento. Essas
pessoas costumam levantar os braços para “louvar o Senhor”, da forma
mais ruidosa e alienada possível, mas no trabalho ignoram Jesus, o Deus
feito homem, que cura e é avesso à injustiça.
Não sou santo, mas
me senti como diante de “cadáveres espirituais”, mortos em espírito,
pelo menos naquele caso. Lembrei-me de uma contundente passagem da Carta
do Apóstolo Tiago (2,26): “Assim como o corpo sem o espírito é morto,
assim também a fé sem a prática é morta”. Gostam mesmo é de “fazer
barulho para Jesus”, como dizem, e só. Vi foi preguiça, descaso com
mulheres e crianças, coisa de pecadores profissionais, gente com fé vã
(já disse: também não sou santo, apesar de querer ser um, de preferência
sem morrer).
Uma das fases mais gloriosas do cristianismo é a
das catacumbas, na clandestinidade da Igreja primitiva. Ser batizado era
assumir estar com os dias contados. Tornar-se bispo ou Papa era
buscar o martírio. Como antes, ter fé exige coragem. Diferente do
pensamento de muitos, é difícil ser cristão. É um olho em Deus e outro
no próximo, como sendo o próprio Pai-Mãe divino.
Quem anda
procurando seres alados nos tetos precisa saber: os primeiros anjos
somos nós. Não temos asas, às vezes, nem sabemos orar. Mas devemos ser,
na prática, os alegres anunciadores-praticantes da boa notícia divina.
Atenção anjos que descem do céu, cuidado com o meu bodoque!
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).