quarta-feira, 23 de junho de 2010

Vou jogar pedra nos anjos

Alessandro Faleiro Marques*

Já estou avisando: se acontecer um barulho perto de mim e se houver anjos voando sobre minha cabeça, “subindo e descendo em todas as direções”, vou tirar do bolso meu bodoque (ou estilingue, como queira) e mandarei pedra para acertar bem no meio das asinhas deles. Não quero “anjos voando neste lugar”, desejo anjos com os pés no chão.

Há poucos dias, ao procurar o posto de saúde de meu bairro para me vacinar contra a tal gripe H1N1, dei-me com a cara no portão. Apesar de ser pouco mais de 16 horas, o porteiro da unidade fechou as portas para quatro mulheres, meia dúzia de crianças, para mim e meu pai. Minutos antes, um senhor agredido verbalmente pelo porteiro foi embora, ameaçando chamar a imprensa. Disseram estar lotado o posto, não podendo entrar mais ninguém. Na faixa colocada no muro e retirada minutos mais tarde, estava claro: atendimento das 8h às 17h. Quando dei por mim, estava acabando de convencer à atendente da Polícia que os militares deveriam nos ajudar.

Depois da chegada dos PMs, fomos vacinados (o posto estava vazio). Para minha desagradabilíssima surpresa, dos poucos servidores públicos que lá estavam, alguns frequentavam a paróquia, cuja matriz está bem em frente ao centro de saúde. Quando me reconheceram como um membro da comunidade religiosa, esticaram sorrisos e adocicaram a voz. Seguindo o costume interiorano, cumprimentei-os, mas assumo: não fiz a menor força de colocar tempero na resposta. Eles, e não o governo, estavam envolvidos em dificultar o nosso acesso ao medicamento. Essas pessoas costumam levantar os braços para “louvar o Senhor”, da forma mais ruidosa e alienada possível, mas no trabalho ignoram Jesus, o Deus feito homem, que cura e é avesso à injustiça.

Não sou santo, mas me senti como diante de “cadáveres espirituais”, mortos em espírito, pelo menos naquele caso. Lembrei-me de uma contundente passagem da Carta do Apóstolo Tiago (2,26): “Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé sem a prática é morta”. Gostam mesmo é de “fazer barulho para Jesus”, como dizem, e só. Vi foi preguiça, descaso com mulheres e crianças, coisa de pecadores profissionais, gente com fé vã (já disse: também não sou santo, apesar de querer ser um, de preferência sem morrer).

Uma das fases mais gloriosas do cristianismo é a das catacumbas, na clandestinidade da Igreja primitiva. Ser batizado era assumir estar com os dias contados. Tornar-se bispo ou Papa era buscar o martírio. Como antes, ter fé exige coragem. Diferente do pensamento de muitos, é difícil ser cristão. É um olho em Deus e outro no próximo, como sendo o próprio Pai-Mãe divino.

Quem anda procurando seres alados nos tetos precisa saber: os primeiros anjos somos nós. Não temos asas, às vezes, nem sabemos orar. Mas devemos ser, na prática, os alegres anunciadores-praticantes da boa notícia divina. Atenção anjos que descem do céu, cuidado com o meu bodoque!


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).