terça-feira, 14 de abril de 2015

A redução da maioridade penal e o nosso crime cotidiano


Alessandro Faleiro Marques*


Nestes dias, em meio à já comum avalanche de notícias, começa a ranger uma que está me dando calafrios. É a tal requentada proposta de redução da maioridade penal. Um verdadeiro festival de hipocrisia de uns e senso comum de outros (muitos destes autoproclamados “especialistas”) está aumentando o ruído avesso ao refletir sereno. É bom que o Estado não se renda a modismos e seja técnico ao decidir o assunto. Sem, é claro, querer esgotar o assunto, apresento alguns pontos para uma boa conversa sobre o tema.

Reduzir a maioridade penal sem diminuir as causas da violência é como tentar curar a febre e não a doença. Se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ou mesmo a Constituição fossem cumpridos com a dignidade que merecem, a maioria dos menores de 18 anos não teria tempo para crimes. Faltam escolas bem equipadas e em tempo integral, quase inexistem opções saudáveis de lazer, famílias e educadores estão desestruturados. A cultura do consumismo e do hedonismo se sobressai à simplicidade e a um projeto de vida. Qualquer discussão sobre direitos de crianças e adolescentes deve começar só depois de governo e sociedade de fato respeitarem a lei que já está aí.

Por falar em sociedade, faço outro questionamento. O Brasil, país de injustiças, teve de criar dezenas e dezenas de artigos para proteger crianças e adolescentes. O nosso consolo é que o ECA surgiu como uma das mais modernas leis de todo o mundo, tornando o Estado e toda a comunidade encarregados da proteção da infância e da adolescência. Então é uma falácia esperar do governo certas soluções. Eu, você e nossos vizinhos somos, sim, responsáveis pelo bem-estar dessas pessoas. Se nós as queremos mandar para a cadeia, deveríamos ir primeiro, pois, antes dos delitos daqueles, nós já cometemos o nosso. Há várias formas de participar, muitas delas em parceria com instituições públicas e privadas: conselhos tutelares e de direito, fundos em favor da infância e da adolescência, conselhos de saúde e de segurança pública. Isso sem contar no nosso apoio a escolas e famílias, e um pouco mais de pesquisa antes de espalhar discursos reacionários. Caso você ache ser “muita areia para o seu caminhãozinho”, pelo menos cobre providências das autoridades ou vote melhor na próxima eleição.

Pra variar, o mais deplorável espetáculo vem dos políticos que propõem a lança e o fogo para os jovens em conflito com a lei. Se há impunidade (o principal argumento dos hipócritas), é porque o próprio governo não está fazendo a parte que lhe cabe, apesar de pagarmos uma das mais altas cargas tributárias do mundo. Em todos os Estados brasileiros, faltam lugares dignos para a internação dos jovens que cometem delitos. Os juízes, sem saída, são obrigados liberar os adolescentes que matam, roubam e traficam drogas. Levar os “condenados” para onde? Ao contrário dos acordes do senso comum, o ECA é rigoroso, sim, com quem transgride a lei. Na verdade, em muitos aspectos, ele está muito à frente do próprio Código Penal e do Código de Processo Penal. Em tempo, lembremos: nenhuma dessas leis é aplicada plenamente.

Outra desafinada nota dos insensatos é relacionar as capacidades de votar e de responder a crimes. Será que ninguém anda lendo a Constituição? O voto para os maiores de 16 e menores de 18 anos é facultativo. Repito: facultativo. Ou seja, é uma forma de inserir a juventude na prática da cidadania. Cá entre nós, é uma pena: muitos desses adolescentes desdenham dessa oportunidade de crescimento pessoal e comunitário. Poderiam até ajudar a eleger quem os defendesse. Mas, recordemos, eles ainda se formam como cidadãos.

Colocar crianças e jovens na cadeia é ineficaz para combater a violência. Houve países que acabaram revendo essa decisão quando viram os crimes aumentando em vez de diminuir. Sou a favor, sim, da redução da maioridade penal. Não para 16, 15 ou 9 anos, porém para um dia de vida. Que o bebê, quando fizer xixi na hora errada ou chorar alto demais, pague por isso. Mandemos essa “sementinha do mal” para a cadeia, quem sabe, para a fogueira da neoinquisição! Antes, porém, cumpramos a lei para só depois dizer que ela é falha.


* Alessandro Faleiro Marques é especialista em Direito Público, professor e revisor de textos. Artigo original publicado no site da Athom 3 Consultoria (www.athom3.com.br).