quarta-feira, 17 de junho de 2009

Impressões da visita à Rainha Morena (2ª parte)


Alessandro Faleiro Marques*

No artigo anterior, o primeiro contato com a monumental Basílica de Nossa Senhora Aparecida, no Vale do Paraíba. Agora, depois da avidez do olhar e das pernas, um pouco de detença.

As horas por lá foram insuficientes para vermos tudo, mas o que sentimos já nos fez participar do capítulo começado no segundo semestre de 1717. A história tem lá suas vaidades. Quando nos assustamos, nela estamos. Criatura esperta. Nós nos damos conta, e já nos pegaram as linhas dos registros. Não há como escapar.

Para as estatísticas, éramos um nada. Dois pontos. Para a "dona da casa", um filho e uma filha juntos com mais dezenas de milhares de irmãos. Coisas de mãe de Onipotente.

Aparecida parece zombar de tamanhos. A cidade e a imagem da padroeira, minúsculas; a fé do povo, imensurável. Diante desta, o templo gigante e a passarela curva nem se comparam. Do chegado da roça ou romeiro da metrópole, de quem já viu tudo ou ainda verá, grande parte do Brasil parece querer caber naquelas colinas. Provar isso é fácil.

Se o País fosse um livro, certamente o sumário dele estaria no subsolo do santuário. Outrora nas paredes da antiga igreja, os reorganizados ex-votos são testemunhas silenciosas de choro e alegria. Sofrimento tornado júbilo. Lágrima enxuta tornada crença nova. A Sala das Promessas, como é chamada, tem rastro de doutor e de peão deste e até de outros povos.

Do teto, milhões de rostos parados em fotografias parecem querer gritar aos que chegam: há o além-palpável. Esperança existe, e é o terminar bem de tudo.

Ressurreição é pra vida toda. Olhando para a parede, vê-se a imagem da padroeira vigiando em sorriso. Mais uns passos, as panelas do avesso, os diplomas, as ferramentas, os capacetes, as fardas e as medalhas. Depois da pilastra, os quadros, os vestidos de noiva, as bandeiras. Ao canto, a réplica do barco dos três pescadores que, no século XVIII, atualizaram o milagre dos peixes do tempo de Cristo. Mais um olhar para cima, e as peças de cera. Braços, pernas, rins, cabeças formando o corpo das dores curadas. No armário, armas. Embaixo, símbolos enfileirados de atletas. Ali, humildes, membros do mesmo time.

O murmúrio dos visitantes abafa o antigo sofrimento emanado dos vícios empilhados em outra prateleira. Coisa dura de ver. O que na tevê é sorriso de comercial, na sala dos milagres, é sobra de amargura. O riso de verdade parece existir agora, mas distante das garrafas, maços e cartas.

Naquele subsolo, tivemos a certeza: erramos acompanhados neste mundo. Nem museu, nem pura exposição ou ponto turístico. De tudo era naquela ponta de livro vivo. Sentimos falta das correntes quebradas, da pedra carimbada pela ferradura. Mas nós as encontramos depois. Assunto para a próxima parte deste artigo.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator, peregrino e revisor de textos
Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Impressões da visita à Rainha Morena (1ª parte)

Alessandro Faleiro Marques*

A verdade: o coração não batia do mesmo jeito. Enquanto avançávamos a estrada paralela à Via Dutra, vencíamos com mais voracidade cada metro engolido pelo carro preto. Nosso destino pareceu estar mais próximo. Não pela indicação das placas, mas pelos homens seguindo no canto da via. Passos rezados, cajado e mochila. A fé deles indicava que estávamos no rumo.

Depois da sequência de curvas, cada pulsação dentro da gente abafava teorias, críticas, ideias preconcebidas. Ao contornarmos a última curva, eis que surge o topo da impressionante torre. Admiramos em voz alta. Outra curva. Ela sumiu. Mais uma contravolta, e lá estava. Gigantesca. Vermelhamente monumental. Éramos engolidos pelo pátio posterior da segunda maior igreja do mundo. Subimos a rampa e nem nos importamos com o preço do estacionamento. Estávamos boquiabertos. Nem sabemos se o troco foi o certo. Queríamos conferir mesmo era se os nossos olhos estavam vendo o Santuário Nacional. Colossal construção a envolver a minúscula imagem aparecida do barrento eme do rio Paraíba.

Tivemos de respirar: emoção e viagem sinuosa desde a ponta da Serra da Mantiqueira, onde ficava Campos do Jordão, terra cheia de europeísmo. Na planura do Vale, juntava-se parte do verdadeiro Brasil. Gente de tudo quanto é cor, sotaque e condição. A nossa reserva de admiração era tanta que começamos o passeio já no grande pátio, em torno do círculo de túmulos episcopais dispostos na ponta de um dos braços abertos em curva.

Andamos rápido. Olhos em tudo. “É logo ali”, disse o guarda. Nem nos lembramos se o agradecemos. Que aqui o seja feito. Subimos a rampa ao som do canto coletivo. Olho fixo na parede, à esquerda. Ao ritmo de nossos passos, ela se nos mostrou naquele fim de manhã do sábado. Lá estava a pequena estátua no nicho nobremente metálico. Em milésimos de segundo, os joelhos dobrados jogavam por terra teologia e tudo quanto é racionalidade. Que se danem os livros! Lá estava a representação da Virgem. Morena da cor de muitos de nós. Assim a Mãe adotou o Brasil.

No silêncio envolvido em vidro blindado, o ícone coroado parecia aumentar o sorriso do barro cozido. Quantas fotos, quanta gente naquele maio. Não sabemos dizer (aliás, pouca coisa se explica em Aparecida), mas tivemos a mesma impressão: a mais brasileira das hebreias estava nos esperando. Parecia saber nosso nome. Nome, sobrenome e vida de cada um que se organizava por entre as barras de corrimão. Revelação que fizemos mutuamente durante o destemperado, deselegante e caro almoço da cidade velha.

Tudo majestoso. Por onde os olhos se voltavam, interjeitavam-se a correição de peregrinos, as pinturas, os corredores, a cúpula, as capelas. Mas a pequena imagem, coroada, mas humilde, representava a maior das mulheres.
No palácio e arredores, não faltam particularidades. Mas isso é assunto para a segunda parte deste artigo.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator, peregrino e revisor de textos
Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com)