quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Impressões da visita à Rainha Morena (4ª e última parte)

Alessandro Faleiro Marques*

Encantamento e piedade não foram as únicas coisas a nos tocar na rápida peregrinação ao Santuário Nacional. A capital católica do Brasil também tem as suas profanas sombras. São em intensidade menor que as da outra, no planalto central. Em Aparecida, contudo, parecem incomodar mais justamente porque nos pegam despreparados.

Logo ao chegarmos ao estacionamento da Basílica, sentimos muita falta dos caminhoneiros. Um antigo costume leva os viajantes do Vale do Paraíba a fazerem um rápido pouso sob o manto da Mãe de Jesus. Onde estariam? Talvez lá, reduzidos na imensidão do templo, mas não os notamos. Que, pelo menos, os vejamos da próxima vez.

A questão do comércio, demanda histórica dos mais críticos, também nos chamou a atenção. Mesmo nós, resignados em um ambiente urbano, acostumados com lojas ávidas pelo dinheiro das multidões e alimentadas pelo carbono do ar, ficamos um pouco constrangidos com o tamanho do chamado “Centro de Apoio ao Romeiro”. Sinceramente, não é muito diferente dos shoppings populares espalhados pelo Brasil. Que o digam os fabricantes chineses. Tivemos certa boa vontade em ver de outro modo o espaço, mas não deu. Pensamos, por exemplo, ser a música tocada no centro da praça de alimentação uma dessas canções religiosas modernas. Não era. Como em qualquer bom palco violão-banquinho, soava um belo clássico de Djavan. Quando nos demos e fizemos as contas, as sacolas já pesavam nossas mãos. Ofegantes, nós nos flagramos com uma lista na mão e pouco no bolso. Não pudemos nos defender frente à nossa consciência. Durante pouquíssimas horas, perdemos o foco. Pagamos o preço. Literalmente.

Perder o rumo da alma em Aparecida é muito fácil. Uma tentação. Parque de diversões, aquário, mulher-macaco, feira que vende de um a tudo. O pior é quando eles nos perdem a vista. Ficamos chocados quando, do mirante da torre, encontramos só a ponta da outra, a da Basílica Antiga. Antes, do alto da colina, os peregrinos já podiam contemplar o histórico templo. Símbolo de uma viagem bem-sucedida. Um dos célebres milagres registrados na terra da Padroeira foi justamente o de uma menina cega que, ao ser levada pela mãe ao santuário, perguntou de longe se aquele que via era o templo de Nossa Senhora. A ganância de uns, a falta de senso histórico de outros e a ignorância de todos permitiram o cerco de concreto à antiga igreja. Prédios de péssimo gosto arquitetônico sufocaram a praça e parte da história do Brasil. O conjunto da igreja singela e da praça sobrevive, desfigurado.

Ainda quanto ao gosto, fomos vítimas de nosso orgulho. Pecamos de novo. Quando visitamos o santuário de Lujan, na Argentina, tentamos provar algumas das iguarias preparadas por nossos irmãos e vizinhos. As vísceras assadas definitivamente não combinaram com o calor úmido daquele dia. Mesmo assim, salpicando críticas cochichadas em português mineiro, engolimos alguma coisa. Pensamos que, em Aparecida, no nosso santuário, seria nossa apimentada "vingança". Caímos no canto da sereia, disfarçada de porteiro de restaurante. Comemos a pior comida de nossa vida. Um espaguete profano e ruim. Sem graça e caro, quase com direito a troco errado de sobremesa. Ponto para a Nossa Senhora de lá.

Para encerrar a lista das observações mais mundanas, não podemos deixar de mencionar de novo o comércio articulado dentro do próprio santuário. Contemplamos o mirante e o museu. Visita paga, mas justa e proveitosa. Na saída, a porta do elevador nos joga para o corredor demarcado por cordas. Contra a nossa vontade, vimo-nos empurrados para a lojinha, ao pé da torre. O silêncio mútuo da hora denunciou: não gostamos. À direita, outra loja: artigos religiosos, água do Paraíba e até ex-votos de cera. Como se eu, morando na casa de minha mãe, vendesse o presente que você daria para ela. Na gloriosa Sala das Promessas, o resultado: os membros de cera são praticamente iguais. Produção em série. Por conveniência, os peregrinos estão deixando de levar seus objetos cheios do colorido regional. Eles os compram ali, ao lado. O espaço, resumo do Brasil, como já dito nesta série, perdendo parte do brilho.

Não gostaríamos de terminar esta série falando mal da Mãe. Afinal, ela nos acolhe e sabe nosso nome. Temperos ruins, ganância e bolsos vazios não impedirão nossa volta à casa da Rainha Morena. Pecadores também somos. Como acontece quando nos aproximamos da mãe, aprendemos mais uma lição. Aqui virou reza: Mãe, negra e pobre como os pobres escravos, Rainha rica em bondade e beleza, fecha nossos olhos e ouvidos ao que nos desvia de teu Filho e de ti. Abre nossa alma para ouvirmos o teu silêncio sábio. Permite podermos contemplar só a tua sabedoria, os teus olhos e o teu doce e barroco sorriso. Que o sabor de tua casa seja o do pão dos anjos. Sejam os caminhos planos, mesmo no subir da Serra. Mãe, como fizemos em teu santuário, visita a nossa casa. Amém.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator, peregrino e revisor de textos
Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Querem esterilizar a história

Alessandro Faleiro Marques*

Em vários contextos e por motivações diferentes, está havendo uma campanha contra os crucifixos. Algumas autoridades dizem que o Estado é laico (conceito quase sempre confundido com "ateu") e, nas dependências de suas instituições, não deve haver símbolos religiosos. Os incrédulos já procuram outro “enfeite”, e até os religiosos andam trocando o crucifixo no pescoço por um potente pen drive, talvez mais útil para eles nestes tempos pós-modernos.

Dias atrás, em um curso (muito proveitoso, diga-se), ouvi de um religioso que, na nova configuração dos templos católicos, tende-se a um destaque aos ícones do Cristo ressuscitado, substituindo as cruzes colocadas segundo as atuais normas litúrgicas. O foco em Jesus vitorioso sobre a morte é justíssimo entre os cristãos, afinal é o evento mais célebre dessa fé. Preocupa-me, porém, outro ponto da pendenga.

A palavra “sacrifício” tem origem no latim “sacrificium” (“sacer”: sagrado; “facere”: fazer), ou seja, fazer sagrada alguma coisa. O paralelo com o pensamento pós-moderno foi inevitável. Neste início de milênio, o individualismo, o prazer instantâneo, a pressa irracional e o excesso de informações fragmentadas nos sufocam e, ao mesmo tempo, envolvem-nos. De repente, estamos nós a propagar valores questionáveis. Quando nos damos conta, já somos parte ativa do "sistemão". Virou coisa do passado esforçar-se pacientemente para realizar um sonho, dar um passo de cada vez.

Se os seguidores de Cristo comemoram a Páscoa, a ressurreição do Ungido, é porque, antes, houve a morte dele. A cruz era, no Império Romano, um instrumento de terror usado para executar pessoas extremamente perigosas para aquele sistema; e Jesus era uma delas. Os primeiros cristãos a rejeitavam como símbolo, pois conheciam de perto o que ela representava. Era sinal de medo e vergonha. Só mais tarde, talvez no século III, a cruz ganhou uma conotação religiosa, celebrando a passagem de Jesus por ela para tornar sagrado o seu projeto.

A atitude de ignorar a cruz hoje pode reforçar algumas injustiças. Se vale somente o Jesus ressuscitado, já pronto, nesta nova concepção, doentes, encarcerados, miseráveis e outros excluídos podem ser esquecidos inclusive pelos cristãos mais distraídos. Será um incremento à “teologia da prosperidade” (outro reflexo do atual hedonismo), segundo a qual só os que possuem são os abençoados.

Ignorar os marginalizados, certamente representados naquele crucificado, é dar outro golpe no Deus que “sacia de bens os famintos e despede sem nada os ricos” (Lc 1,53). E mais: a sociedade do descartável agradece; agora tem outra boa ideologia para justificar-se. Enfermos, idosos, crianças, desempregados, analfabetos serão aterrados, pois não produzem e nem compram, são peças quebradas, inúteis nas engrenagens insaciáveis do “mercado”, feito de carne e osso.

Mesmo quem não professa o cristianismo ou qualquer outra fé deve refletir sobre essa onda de jogar para debaixo do tapete o sangue, o pó, a tortura, o sofrimento divino e humano ao mesmo tempo. Isso pode refletir-se em valores que transcendem escolhas espirituais e afetar a vida de todos. Nós também precisamos do Deus imundo e ensanguentado.




* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O palavrão do livro didático

Alessandro Faleiro Marques*

Os adeptos dos orgasmos pedagógicos que me desculpem, mas uma notícia na tevê me deixou com um nó nas entranhas. Um livro didático distribuído pelo governo de Minas Gerais para alunos do ensino fundamental trazia um texto cheio de palavrões, termos chulos, tabuísmos e tudo mais que o eufemismo tenta aliviar. A justificativa: os personagens precisariam disso para poder criticar uma situação excludente. Confesso: tive de rever a notícia para acreditar. E o pior, a polêmica se deu também em escolas públicas de outros estados, em obras aprovadas pelas respectivas secretarias de Educação.

O mais bizarro disso, deixando-me boquiaberto, é alguns educadores aprovarem a ideia. Felizmente foi a minoria. Nenhum governante pediu minha palavra, apenas cobrou de mim os impostos para financiar essa aberração, mas ressalto: é um absurdo! Sou um cafona assumido em algumas questões educacionais. Sou dos bons tempos da escola ensinando coisas boas. Os educadores andavam bem arrumados (mesmo ganhando mal), emanavam sabedoria e se davam respeito. Aprendi muita coisa com o exemplo deles. Sou testemunha de que o ensino não verbal também é importante num ambiente nobre como eram as escolas públicas onde estudei.

Para mim, não serve a desculpa de ser a vida fora da escola cheia de mazelas e de fatos pouco publicáveis. Disseram que os alunos devem aprender da realidade. Outro disparate! Se fosse assim, por que estudar sobre a neve (clássico exemplo) ou sobre o Saara? Não pertencem ao nosso cotidiano. Não me lembro de ter trocado tiros com meus colegas para aprender sobre as guerras. Senhores educadores, voltemos às origens (as boas, é claro). Esqueçamos um pouco o governo e algumas teorias só teóricas. Sejamos verdadeiramente mestres por dentro e por fora.

Quanto ao livro esquisito, gostaria de solidarizar-me com pais, educadores e alunos (sim, eles também) que desaprovaram a asneira. Ânimo! Vamos continuar fazendo tudo para ver se essa geração de boné na cabeça e bermudão tenha o mínimo de valores. Não deixemos de lado a escola, apoiemos as boas iniciativas dela e continuemos a cobrar dos nossos governantes mais investimentos para a nossa juventude.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).