Alessandro Faleiro Marques*
Para protesto de meus amigos, que ficaram semiprivados de minha
audiência nas vitais microassembleias etílicas de
sexta-feira à noite, deixei-me ser enfeitiçado pelo canto da sereia
linguística. Meus ouvidos encheram-se de palavras sonoras como
declinação, acusativo, particípio futuro, gerundivo e muitas outras. E,
impelido pela genética de minhas células curiosas, já estou de pé quase
todo sábado, bem cedo. Com ou sem gosto de cabo de guarda-chuva na boca,
coloco minha maletinha debaixo do braço e vou para o curso de latim.
Já estou quase no fim, e isso me deixa um pouco mais atrevido para
opinar sobre a tal língua-mãe. A primeira coisa é questionar a simplória
ideia de o idioma de Virgílio ter dado origem ao português. Não é bem
assim. Entre outros “empréstimos”, os romanos pegaram muito da gramática
dos gregos, cuja brilhante cultura nem a poeira das sandálias dos
centuriões conseguiu ofuscar. Quem é vítima desse clichê parece ter se
esquecido da vasta contribuição indígena, africana, árabe e anglo-saxônica, por
exemplo, ao nosso léxico. Seja como for, admito: a cada aula, fico mais
impressionado com a nossa herança do Lácio.
Apesar de ser loucura para os de fora, considero esse estudo um bom
programa. Passo um bom tempo tentando descobrir e reordenar vocábulos
metamorfoseados conforme sua função na frase. Posso garantir, é muito
melhor do que palavra cruzada. Cérebro funcionando, dizem, ajuda a
combater doenças como o mal de Alzheimer, por isso o latim é, no mínimo,
um remédio anticaduquice.
Os termos latinos são uma mescla de exótico e sagrado, selvagem e belo.
Enquanto as palavras se deixam amansar para nosso idioma, sinto uma
entorpecente sensação de crescimento, de respeito, de um refinado
“sei-que-nada-sei”.
Outro encanto foi apreciar a Vulgata, a tradução do texto bíblico para o
latim conduzida por São Jerônimo. Até onde eu vi, o método é um exemplo
para os escritores de hoje. O santo e doutor da Igreja procurou divulgar, de modo muito
claro, uma mensagem profunda. Tudo sem firulas, sem eruditismos. Para
ele, quanto mais gente conhecesse a Boa-nova, melhor. Também me
impressionei com a sabedoria das fábulas de Fedro, uma legítima
coletânea de “causos” atualizáveis no dia a dia.
O idioma em si é um espetáculo à parte. Em poucas palavras, aquele povo
dava o recado. O latim pede raciocínio, paciência e uma mesa enorme,
para que se abram livros e livros para consulta simultânea, uma forma de
fugir das traquinagens dos vários falsos cognatos.
Com esse estudo, caiu, pelo menos para mim, mais um mito. O fato de
estudar latim não faz ninguém entender o português, até porque nós,
falantes nativos, já sabemos este. Ao contrário, conhecer um pouco da
nossa gramática me ajudou muito a encarar as aulas da manhã de sábado.
Os professores também me surpreenderam. São de bem com a vida, jovens e
transmitem segurança. Bem diferente de alguns de outrora, ranzinzas e adoradores do
antigo decoreba.
Minha decepção foi ver o descaso que as editoras brasileiras têm com o
idioma de Ovídio. Uma delas, entre as menos acomodadas, simplesmente publicou um fac-símile de um dicionário da década de 1920. Em caminho inverso a
outros países, como os da Europa, há pouca coisa nova por aqui. Por
isso, vida longa aos sebos! Outra chatice foi ter de justificar para
alguns o motivo de meu estudo. Ora, pois sou das letras e fui escolhido
por elas! E o papo de língua morta? Vejo o latim, junto com outros
sistemas antigos, sobreviver em nossas palavras e no cotidiano de
milhões de pessoas em todo o mundo.
Hoje existe uma estrutura bem montada para não aprendermos com os mais
velhos. A principal lição do curso, contudo, é o retorno ao antigo
costume de ouvir o outro, mesmo que este tenha vivido dezenas de séculos
atrás. Que a sereia continue a cantar.
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).