sábado, 9 de outubro de 2010

Ouvi o canto dos antigos

Alessandro Faleiro Marques*

Para protesto de meus amigos, que ficaram semiprivados de minha audiência nas vitais microassembleias etílicas de sexta-feira à noite, deixei-me ser enfeitiçado pelo canto da sereia linguística. Meus ouvidos encheram-se de palavras sonoras como declinação, acusativo, particípio futuro, gerundivo e muitas outras. E, impelido pela genética de minhas células curiosas, já estou de pé quase todo sábado, bem cedo. Com ou sem gosto de cabo de guarda-chuva na boca, coloco minha maletinha debaixo do braço e vou para o curso de latim.

Já estou quase no fim, e isso me deixa um pouco mais atrevido para opinar sobre a tal língua-mãe. A primeira coisa é questionar a simplória ideia de o idioma de Virgílio ter dado origem ao português. Não é bem assim. Entre outros “empréstimos”, os romanos pegaram muito da gramática dos gregos, cuja brilhante cultura nem a poeira das sandálias dos centuriões conseguiu ofuscar. Quem é vítima desse clichê parece ter se esquecido da vasta contribuição indígena, africana, árabe e anglo-saxônica, por exemplo, ao nosso léxico. Seja como for, admito: a cada aula, fico mais impressionado com a nossa herança do Lácio.

Apesar de ser loucura para os de fora, considero esse estudo um bom programa. Passo um bom tempo tentando descobrir e reordenar vocábulos metamorfoseados conforme sua função na frase. Posso garantir, é muito melhor do que palavra cruzada. Cérebro funcionando, dizem, ajuda a combater doenças como o mal de Alzheimer, por isso o latim é, no mínimo, um remédio anticaduquice.

Os termos latinos são uma mescla de exótico e sagrado, selvagem e belo. Enquanto as palavras se deixam amansar para nosso idioma, sinto uma entorpecente sensação de crescimento, de respeito, de um refinado “sei-que-nada-sei”.

Outro encanto foi apreciar a Vulgata, a tradução do texto bíblico para o latim conduzida por São Jerônimo. Até onde eu vi, o método é um exemplo para os escritores de hoje. O santo e doutor da Igreja procurou divulgar, de modo muito claro, uma mensagem profunda. Tudo sem firulas, sem eruditismos. Para ele, quanto mais gente conhecesse a Boa-nova, melhor. Também me impressionei com a sabedoria das fábulas de Fedro, uma legítima coletânea de “causos” atualizáveis no dia a dia.

O idioma em si é um espetáculo à parte. Em poucas palavras, aquele povo dava o recado. O latim pede raciocínio, paciência e uma mesa enorme, para que se abram livros e livros para consulta simultânea, uma forma de fugir das traquinagens dos vários falsos cognatos.

Com esse estudo, caiu, pelo menos para mim, mais um mito. O fato de estudar latim não faz ninguém entender o português, até porque nós, falantes nativos, já sabemos este. Ao contrário, conhecer um pouco da nossa gramática me ajudou muito a encarar as aulas da manhã de sábado. Os professores também me surpreenderam. São de bem com a vida, jovens e transmitem segurança. Bem diferente de alguns de outrora, ranzinzas e adoradores do antigo decoreba.

Minha decepção foi ver o descaso que as editoras brasileiras têm com o idioma de Ovídio. Uma delas, entre as menos acomodadas, simplesmente publicou um fac-símile de um dicionário da década de 1920. Em caminho inverso a outros países, como os da Europa, há pouca coisa nova por aqui. Por isso, vida longa aos sebos! Outra chatice foi ter de justificar para alguns o motivo de meu estudo. Ora, pois sou das letras e fui escolhido por elas! E o papo de língua morta? Vejo o latim, junto com outros sistemas antigos, sobreviver em nossas palavras e no cotidiano de milhões de pessoas em todo o mundo.

Hoje existe uma estrutura bem montada para não aprendermos com os mais velhos. A principal lição do curso, contudo, é o retorno ao antigo costume de ouvir o outro, mesmo que este tenha vivido dezenas de séculos atrás. Que a sereia continue a cantar.


 
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).