domingo, 12 de dezembro de 2010

Dedos voltados para o céu

Alessandro Faleiro Marques*

(Dedico este texto a Márcio Almeida, grande teólogo, a quem devo algumas palavras há muito tempo.)

As residências já piscam para as celebrações de Natal. Obviamente, as lojas acenderam as estéreis luzes há muito tempo, pouco se importando com o sábio ritmo litúrgico desta época (aliás, nem devem saber o que é isso). Alguns entre tantos também arrumam a casa do próprio espírito. Buscam festejar, da forma mais digna possível, o nascimento de Jesus.

Neste ano, minha reflexão se baseia numa foto publicada num noticiário da internet. Uma imagem extremamente chocante para mim, na qual um muçulmano reza de dedos voltados para o céu. Nada de mais, não fosse a mancha amarela viscosa no rosto do homem. A mácula foi causada por ovos lançados pela dureza de alguns “cristãos” ortodoxos de Atenas. Os agressores acusam os filhos de Alá, a maioria imigrantes, de causarem distúrbios na área. Os agredidos denunciam preconceito e afirmam faltar a eles um lugar digno e seguro para o culto, sendo obrigados a se reunir numa praça.

Creio que eu, um frágil seguidor de Cristo, teria dificuldades profundas de orar num ambiente desses. Mas o moço está de olhos entreabertos. De boca silenciosa e rosto humilde, louva o Deus de Abraão, nosso pai comum. A cena me deixa inquieto até hoje. O maior sentimento é de profunda vergonha por meus patrícios espirituais terem violado um momento tão importante para os discípulos de Maomé. O outro é de penitência, de reconhecimento das limitações de minha veia transcendente. Nunca conseguiria concentrar-me, nem mesmo em pose para a foto. Por último, de compaixão por islâmicos, cristão, umbandistas, judeus, budistas e outras pessoas que ainda sofrem ataques por causa de sua crença, seja na Grécia, na Palestina, no Iraque, no Brasil, na China ou em qualquer lugar.

Aos heróis da verdadeira fé, seja ela qual for, minhas homenagens neste Natal. Rezarei por quem faz da religião um caminho mais curto de chegar ao Deus, autor da vida, por aqueles que pouco se importam com as “tendências atuais” e, assim, multiplicam a herança de paz e justiça de legítimas assembleias orantes. Seja nosso louvor o “escândalo” não só no tempo de pisca-pisca, mas por todo o ano. E que todos tenham um lugar onde fazer isso.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

sábado, 9 de outubro de 2010

Ouvi o canto dos antigos

Alessandro Faleiro Marques*

Para protesto de meus amigos, que ficaram semiprivados de minha audiência nas vitais microassembleias etílicas de sexta-feira à noite, deixei-me ser enfeitiçado pelo canto da sereia linguística. Meus ouvidos encheram-se de palavras sonoras como declinação, acusativo, particípio futuro, gerundivo e muitas outras. E, impelido pela genética de minhas células curiosas, já estou de pé quase todo sábado, bem cedo. Com ou sem gosto de cabo de guarda-chuva na boca, coloco minha maletinha debaixo do braço e vou para o curso de latim.

Já estou quase no fim, e isso me deixa um pouco mais atrevido para opinar sobre a tal língua-mãe. A primeira coisa é questionar a simplória ideia de o idioma de Virgílio ter dado origem ao português. Não é bem assim. Entre outros “empréstimos”, os romanos pegaram muito da gramática dos gregos, cuja brilhante cultura nem a poeira das sandálias dos centuriões conseguiu ofuscar. Quem é vítima desse clichê parece ter se esquecido da vasta contribuição indígena, africana, árabe e anglo-saxônica, por exemplo, ao nosso léxico. Seja como for, admito: a cada aula, fico mais impressionado com a nossa herança do Lácio.

Apesar de ser loucura para os de fora, considero esse estudo um bom programa. Passo um bom tempo tentando descobrir e reordenar vocábulos metamorfoseados conforme sua função na frase. Posso garantir, é muito melhor do que palavra cruzada. Cérebro funcionando, dizem, ajuda a combater doenças como o mal de Alzheimer, por isso o latim é, no mínimo, um remédio anticaduquice.

Os termos latinos são uma mescla de exótico e sagrado, selvagem e belo. Enquanto as palavras se deixam amansar para nosso idioma, sinto uma entorpecente sensação de crescimento, de respeito, de um refinado “sei-que-nada-sei”.

Outro encanto foi apreciar a Vulgata, a tradução do texto bíblico para o latim conduzida por São Jerônimo. Até onde eu vi, o método é um exemplo para os escritores de hoje. O santo e doutor da Igreja procurou divulgar, de modo muito claro, uma mensagem profunda. Tudo sem firulas, sem eruditismos. Para ele, quanto mais gente conhecesse a Boa-nova, melhor. Também me impressionei com a sabedoria das fábulas de Fedro, uma legítima coletânea de “causos” atualizáveis no dia a dia.

O idioma em si é um espetáculo à parte. Em poucas palavras, aquele povo dava o recado. O latim pede raciocínio, paciência e uma mesa enorme, para que se abram livros e livros para consulta simultânea, uma forma de fugir das traquinagens dos vários falsos cognatos.

Com esse estudo, caiu, pelo menos para mim, mais um mito. O fato de estudar latim não faz ninguém entender o português, até porque nós, falantes nativos, já sabemos este. Ao contrário, conhecer um pouco da nossa gramática me ajudou muito a encarar as aulas da manhã de sábado. Os professores também me surpreenderam. São de bem com a vida, jovens e transmitem segurança. Bem diferente de alguns de outrora, ranzinzas e adoradores do antigo decoreba.

Minha decepção foi ver o descaso que as editoras brasileiras têm com o idioma de Ovídio. Uma delas, entre as menos acomodadas, simplesmente publicou um fac-símile de um dicionário da década de 1920. Em caminho inverso a outros países, como os da Europa, há pouca coisa nova por aqui. Por isso, vida longa aos sebos! Outra chatice foi ter de justificar para alguns o motivo de meu estudo. Ora, pois sou das letras e fui escolhido por elas! E o papo de língua morta? Vejo o latim, junto com outros sistemas antigos, sobreviver em nossas palavras e no cotidiano de milhões de pessoas em todo o mundo.

Hoje existe uma estrutura bem montada para não aprendermos com os mais velhos. A principal lição do curso, contudo, é o retorno ao antigo costume de ouvir o outro, mesmo que este tenha vivido dezenas de séculos atrás. Que a sereia continue a cantar.


 
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

sábado, 4 de setembro de 2010

Candidato, cuidado com o eleitor ficha suja

Alessandro Faleiro Marques*

Como torço por sua vitória nas eleições, já vou chamar-lhe de Excelência, para o senhor ir se acostumando com o justo título. Sinceramente, não tenho medida do quanto é difícil disputar esse vestibular da democracia. Muitos comícios, argumentos, contra-argumentos, e o pior, ter de viver num ambiente repugnante para a maioria das pessoas. Tenha paciência e seja persistente. Excelência, em muitas nações, há lutas sangrentas para a conquista do direito que, nós, eleitores, muitas vezes desdenhamos por aqui. Possamos aproveitar bem essa oportunidade.

O senhor é honesto, trabalhador, consciente da missão de serviço a qual se propõe. Se me permite, Excelência, gostaria de dar-lhe um fraternal conselho: cuidado com o eleitor ficha suja, corrupto, de alma imunda, propagador das misérias e das injustiças de cada dia. Semana passada, outro candidato merecedor do título com que lhe honro confessou-me estar revoltado. Foi abordado por uma senhora, e esta lhe pediu um caminhão de areia em troca do voto. Ainda chocado pela imoralidade da mulher até outrora respeitável, ele me disse tê-la mandado para o inferno. Achei isso maravilhoso! O senhor também faria isso, mesmo com outras palavras, tenho certeza.

Já ouvi de alguns vizinhos a queixa de que não ganham mais nada, perderam o “direito” de ver aquela dupla sertaneja famosa aqui, bem perto de casa, de graça. “Não se fazem eleições como antigamente”, dizem. Pois é, Excelência, agora posso ouvir, sem confetismos, o que o senhor e os outros candidatos têm a dizer. Suas propostas para cuidar da “res publica”, a coisa de todos.

Eu estava pensando... o desonesto deve adorar essa história de todo político ser chamado ladrão. Isso serve para enfraquecer as propostas de mulheres e homens sérios e fortalecer os adoradores do egoísmo, da antivida e da injustiça. Quando se generaliza, colocam-se todos como “farinha do mesmo saco”, abafando-se quem quer trabalhar. Mais uma vez, suplico ao senhor: tenha persistência e coragem. Sou testemunha de seu empenho em favor da vida em abundância, sobretudo para os mais fracos.

Eu apoiarei seu protesto contra o eleitor corrupto, principalmente contra aqueles com esclarecimento suficiente para ter ideia dos próprios atos. Prometo não render mais conversa quando alguém chegar falando mal dos políticos. Denegrirei quem deixa de votar em pessoas como o senhor e escolhe os que se corrompem. Se uma pessoa eleita é ruim, muitas vezes ela o era assim antes. Pilantra é quem, sabendo disso, insiste em mantê-la em tão honorável serviço.

Cá entre nós, o senhor acharia ser preciso existir uma lei contra candidatos “ficha suja”? Se os cidadãos levassem a sério a importância da escolha dos próprios representantes, a legislação seria apenas um apoio para proteger os mais débeis ou distraídos. O mesmo candidato que xingou a mulher corrupta me contou que, no partido em que é filiado, sobraram apenas sete candidatos de uma lista de oitenta. Se o povo fosse mais cuidadoso, os setenta e três barrados sequer tentariam se inscrever, pois teriam a certeza de não serem eleitos.

Desejo ao senhor muita sorte e, aos meus irmãos eleitores, muito juízo. Quanto aos sujos, todos eles, vassoura!


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Campanha contra a intoxicação digital

Alessandro Faleiro Marques*

Como educador, cada vez mais me convenço de que existe o “emburrecimento”, ou seja, o lado oposto da aprendizagem, do crescer não só acadêmico, mas de espírito e sabedoria. Obviamente, nos meus tempos de faculdade, nenhum dos meus mestres ousou tocar no assunto do processo da desinteligência. Isso nos desanimaria? Seria um segredo só para os já iniciados?

Uma das causas do mal é a ingenuidade, o deslumbre débil diante de certas inovações. Outro dia, li um artigo dizendo que adiantou pouquíssimo encher de computadores as escolas. Fiquei impressionado com o fato de isso ter aumentado os casos de déficit de atenção. Em resumo, o projeto de abarrotar de aparelhos as salas de aula só serviu para dar mote para propaganda governamental, atrair pais e alunos (chamados de clientes pelas grandes e pequenas redes de colégios) e para encher a cabeça de crianças e adolescentes de muita, muita toxina digital. São tantas informações que os neurônios da moçada estão dando curto-circuito. O intento, de princípio bom, ainda saciou o desejo de orgasmo pedagógico de alguns mais “empolgados”, achando que a simples eletronização didática colocaria a escola e os jovens “ligados ao mundo e à modernidade”.

Apesar do encantamento, houve pouco ou nenhum preparo dos educadores para melhor aproveitarem o recurso, sobretudo para o uso da internet. Os jovens também não foram preparados. Adolescentes, crianças e adultos ficaram apenas boquiabertos com a tecnologia e, estéreis, entregaram-se a ela. Valorizou-se muito o meio, não o fim.

O excesso de dados entope a cabeça das pessoas. É um fenômeno comum na Pós-modernidade, tempo marcado pela rapidez, mosaiquices e descarte fácil de coisas, ideias e pessoas. Cabeça entupida é mundo caótico, não contemplativo... existindo só porque nasceu.

Em vez de só reclamar, ouso sugerir uma “Campanha de Desintoxicação Digital”. Selecione suas leituras, seja frio. Descarte o inútil, veja o essencial. Faça o jejum cibernético e veja se realmente é essencial para sua vida a avalanche de textos, piadas, álbuns, fofocas, gráficos e infográficos.

Sejamos seletivos, questionadores e preocupemo-nos em colocar no devido lugar o útil mundo digital. Diga sim ao olho no olho, ao inteligenciamento, às luzes. Desintoxique-se!


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Vou jogar pedra nos anjos

Alessandro Faleiro Marques*

Já estou avisando: se acontecer um barulho perto de mim e se houver anjos voando sobre minha cabeça, “subindo e descendo em todas as direções”, vou tirar do bolso meu bodoque (ou estilingue, como queira) e mandarei pedra para acertar bem no meio das asinhas deles. Não quero “anjos voando neste lugar”, desejo anjos com os pés no chão.

Há poucos dias, ao procurar o posto de saúde de meu bairro para me vacinar contra a tal gripe H1N1, dei-me com a cara no portão. Apesar de ser pouco mais de 16 horas, o porteiro da unidade fechou as portas para quatro mulheres, meia dúzia de crianças, para mim e meu pai. Minutos antes, um senhor agredido verbalmente pelo porteiro foi embora, ameaçando chamar a imprensa. Disseram estar lotado o posto, não podendo entrar mais ninguém. Na faixa colocada no muro e retirada minutos mais tarde, estava claro: atendimento das 8h às 17h. Quando dei por mim, estava acabando de convencer à atendente da Polícia que os militares deveriam nos ajudar.

Depois da chegada dos PMs, fomos vacinados (o posto estava vazio). Para minha desagradabilíssima surpresa, dos poucos servidores públicos que lá estavam, alguns frequentavam a paróquia, cuja matriz está bem em frente ao centro de saúde. Quando me reconheceram como um membro da comunidade religiosa, esticaram sorrisos e adocicaram a voz. Seguindo o costume interiorano, cumprimentei-os, mas assumo: não fiz a menor força de colocar tempero na resposta. Eles, e não o governo, estavam envolvidos em dificultar o nosso acesso ao medicamento. Essas pessoas costumam levantar os braços para “louvar o Senhor”, da forma mais ruidosa e alienada possível, mas no trabalho ignoram Jesus, o Deus feito homem, que cura e é avesso à injustiça.

Não sou santo, mas me senti como diante de “cadáveres espirituais”, mortos em espírito, pelo menos naquele caso. Lembrei-me de uma contundente passagem da Carta do Apóstolo Tiago (2,26): “Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé sem a prática é morta”. Gostam mesmo é de “fazer barulho para Jesus”, como dizem, e só. Vi foi preguiça, descaso com mulheres e crianças, coisa de pecadores profissionais, gente com fé vã (já disse: também não sou santo, apesar de querer ser um, de preferência sem morrer).

Uma das fases mais gloriosas do cristianismo é a das catacumbas, na clandestinidade da Igreja primitiva. Ser batizado era assumir estar com os dias contados. Tornar-se bispo ou Papa era buscar o martírio. Como antes, ter fé exige coragem. Diferente do pensamento de muitos, é difícil ser cristão. É um olho em Deus e outro no próximo, como sendo o próprio Pai-Mãe divino.

Quem anda procurando seres alados nos tetos precisa saber: os primeiros anjos somos nós. Não temos asas, às vezes, nem sabemos orar. Mas devemos ser, na prática, os alegres anunciadores-praticantes da boa notícia divina. Atenção anjos que descem do céu, cuidado com o meu bodoque!


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O crime do papel colorido

Alessandro Faleiro Marques*

Chegara o dia. Casa vazia. Os filhos e os netos viajando, como previra. Nos últimos tempos, a senhora, respeitável, andava com um semblante de leve mudado. Não era uma linha a mais do bisturi do tempo, tampouco o prenúncio de outro ataque aos rins, evento comum desde que perdeu o marido. Pelo contrário, a senhora espichava mesmo era um sorriso no rosto. Atrevido tal vilã de novela das seis. Se a filha mais velha fosse menos voada, certamente notaria alguma coisa para acontecer.

Exímia cozinheira, a doninha andava demonstrando certa preguiça em manipular os temperos, substâncias quase mágicas em suas mãos. Havia um certo silêncio pela casa. Aumentou-se apenas o ruído das pancadas estranhas e impacientes nas panelas. Multiplicaram-se as quedas dos copos de vidro. Outrora zelosa, não evitou que o ferro queimasse a camisa do filho. Nem se importou com o esbravejar do rapaz. Antes isso era motivo de lágrimas pseudorresignadas; agora, o palavreado servia apenas para desentupir os ouvidos cansados. Até uma janela esqueceu aberta, fugindo do senso comum de muitos idosos. De notório, maquinava algo.

Acordou diferente na sexta-feira. Mais tarde. Bem depois do nascer do sol. Enfim, hoje, poria real o projeto. A casa só dela. Olhava amiúde no relógio. Para si, contentou-se em esquentar apenas um arroz com meio ovo mexido. Nada mais. Vez ou outra, consultava de rebarba na gaveta um papel colorido. Mais tarde, ela o colocou na frente do avental limpo. As horas custavam. Naquele dia, não estava incansável. Deixou-se aconchegar no sofá. Cochilou. Pulou cinco minutos depois, talvez seis.

Despudoradamente, tirou o papel do bolso. Pelo ritmo aumentado dos movimentos, o tempo parecia chegar. Sol escondido. Janela agora cerrada. Respirou fundo. Deu um passo rumo ao telefone. Respirou de novo, curto. Mais um passo. O descarado papel estava todo aberto agora. Procurou nele o círculo marcado de caneta falha quinze dias antes. Logo acima, outro sinal, sobre um número. Sentou-se ao lado do telefone. Aprendera a usar o aparelho aquelas semanas, vendo de longe os netos. Tirou do gancho. Respirou forte. Conferiu o rabisco. Discou. Silêncio. Espera. “Quem fala?” “Olá, senhora! A que devo a honra da novidade?” “Filho, faça o favor, mande para mim agora o sanduíche número sete e capriche no defumado.”


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O fim do mundo da inteligência

Alessandro Faleiro Marques*

Dizem que a melhor forma de divulgar uma obra é falar mal dela. Os produtores pulam de alegria quando um comunicador, um líder, um educador desaconselha algum trabalho. Assim, recomendo: "assista" ao filme “2012”. Depois não reclame, pois eu avisei. Prepare-se para um grande arrependimento de ter gasto seus suados reais em mais uma imbecilidade, em vez de tomar aquele chope gelado ou comer algo gorduroso em um bar e se divertir com as caras decepcionadas saindo das salas depois de pagarem caro para ver mais uma asneira do circuitão comercial.

O filme é uma ofensa à mais medíocre inteligência. A imprensa anda dizendo que o autor, Roland Emmerich, gosta muito de trabalhar com clichês, mas vejo por outro lado: faltam mesmo é criatividade e leitura. Nem os efeitos visuais são os melhores já produzidos por Hollywood, sem contar as ideologias pra lá de ridículas mostradas na telona.

A destruição do mundo é causada pelo superaquecimento do núcleo da Terra. Uma piada! O superaquecimento está aqui, na parte de cima. No mundo real, a Terra é a vítima. Outra blasfêmia nas quase duas horas e quarenta minutos de tempo perdido é o fato de o G8, o grupo dos mais poderosos países do mundo, serem os salvadores dos humanos (os que podem pagar muito em euros, é claro!). Na verdade, o grupo de ricos é o maior responsável pelo colapso do planeta. E uma crítica a ser aprofundada por algum intelectual: a China aparece, em "2012", como mera executora dos projetos. Outra parte chinfrim são os helicópteros, em plena neve, levando animais africanos para as tais arcas. Senhor Emmerich, hoje já existe tecnologia para armazenar o código genético, sobrando mais espaço na geringonça flutuante.

A espiritualidade, um patrimônio humano, também é ridicularizada na baboseira. O piloto orando e mostrado como um imbecil, o Cristo Redentor tombando pela fúria da “natureza” e a Basílica de São Pedro caindo, em um único bloco, sobre os fiéis que recebem a derradeira bênção pontifícia. Quanta tolice! Se o autor tivesse o menor conhecimento de religião, saberia que, em todas (as sérias), a mensagem sempre é de esperança. Este mundo acaba, e de forma cinematograficamente catastrófica, só para os incrédulos.

Fica um elogio (só um, para minha tristeza): o marketing social. Diferente dos autores de nossas novelas, os americanos sabem fazê-lo muito bem. Os negros têm papel de destaque, sem precisar fazer discursos sobre racismo. Isso aconteceu também em "Independence Day", do mesmo autor. A sempre esquecida África sobrevive à catástrofe e, nela, a humanidade, ou melhor, quem pagou passagem nas arcas, recomeçará.

O cinema e outras formas de arte não precisam mostrar a realidade. É diversão e nada mais. No entanto, desde que o tema trabalhe com ideologias claras, o público tem direito de questionar a obra. Nunca é demais lembrar: por trás e na frente da tela, há pessoas. Comunicação é troca e, se o nosso cotidiano fornece subsídios, podemos dialogar com quem se inspira nele.

Um segredo: estou torcendo para esse filme ganhar uma sacola cheia de estatuetas do Oscar. Isso apenas confirmaria minha tese de que esse prêmio, como o próprio filme, reconhece menos a obra e mais a propaganda do dominador.

Poderia gastar mais linhas comentando 2012, mas não quero cair no mesmo erro do autor. Longe de mim tomar o tempo de alguém.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).