sábado, 28 de setembro de 2013

Nosso nome, nossa autoestima

Alessandro Faleiro Marques*

Ninguém melhor do que nós mesmos para saber como um nome é importante. Ele costuma trazer não só a nossa história, mas também a de nossos pais, as escolhas e as inspirações que tiveram antes de nós chegarmos a este mundo de Deus. Mas, quando eles se descuidam, somos condenados a passar a vida inteira soletrando ou ouvindo comentários inconvenientes. Uma irritante e pesada cruz verbal.

Tempos atrás, publiquei no Quase sem Mistério um comentário sobre o nome do principezinho inglês, filho dos badalados William (Guilherme, em português) e Kate (apelido de Catarina). Disse que os brasileiros logo começariam a copiar o nome bebê: George Alexander Louis (Jorge Alexandre Luís). E não deu outra. Agora, os mais “espertos” desenham as letras num pedaço de papel e têm somente o trabalho de entregá-lo ao atendente do cartório; os outros, ainda mais “espertos”, ditam a frase para o coitado do outro lado do balcão e joga para ele a responsabilidade da grafia. A depender do caso, o resultado de ambas as opções pode ser explosivo e, pior, tragicômico.

Estou impressionado com a baixa autoestima dos brasileiros. Temos um dos mais belos e vivos idiomas ocidentais, muito sonoro e suave, com suas inúmeras e ricas variantes. No entanto, muitos de nossos nomes modernos têm origem no inglês, francês, italiano (como o meu, mas ele me encanta) e, quando muito, em latim, russo ou grego. Outros vieram de lugar nenhum. Frutos de puro modismo, mau gosto, idolatrismos, ignorância, caricaturas lexicais, fundamentalismos. Aparecem até apelidos e sobrenomes gringos. São graças sem graça.

Muito além da celebrada antropofagia dos modernistas, alguns prenomes são verdadeira violência contra os bebês. Experimentei constrangimento alheio quando soube de um trabalho de escola. A bem intencionada professora pediu aos alunos que pesquisassem em casa o motivo da escolha de seus nomes. Muitos pais não souberam responder, e os pequenos devolveram em branco o outrora alegre formulário.

Ainda no âmbito escolar, algumas crianças, mesmo em séries mais avançadas, têm dificuldades de grafar como se chamam. Também, diante de tanto k, y, w, h (mudo ou não) e letra dobrada... Não é necessário existir uma lista fechada como em Portugal, mas um pouco de carinho e bom senso faz grande diferença.

Nome de tudo é algo sagrado. É a substância, o substantivo. No Mito da Criação, Deus apresentou ao primeiro homem as criaturas para que este as denominasse. E o Criador respeitou as escolhas de Adão (Gn 2,19-20). Herdamos daí o “nome de batismo”. Por essas e outras, Deus, o Cara, o Todo-poderoso e cheio de bondade, também nos chama pelo nome, por isso devemos caprichar.

Viver é fácil


Para quem gosta de corrigir texto dos outros (nem olhe para mim!), lembro que as regras de ortografia também valem para nomes próprios. Isso vale para pais e profissionais dos cartórios. Outra coisa, alguns podem, sim, ser traduzidos, como de papas e monarcas. Em Portugal e países de língua espanhola, a soberana da Inglaterra é chamada de Isabel, o herdeiro direto é o príncipe Carlos, pai dos príncipes Guilherme e Henrique. O Papa Francisco (em português e espanhol) atende por François, Francesco, Franciscus, Francis, Franciszka e Franziskus, respectivamente em francês, italiano, latim, inglês, polonês e alemão.

E mais, não somos obrigados a pronunciar como em outro idioma. É um equívoco, por exemplo, rir de quem diz “Freudi” (em vez de Froidi) ao se remeter ao Pai da Psicanálise. Por aqui, as letras “e” e “u”, quando juntas, têm som de “eu” e não de “ói”. Desconheço lei que nos obrigue a saber alemão. Para testar, experimente pedir a estrangeiros a leitura de alguns nomes brasileiros. Surpreenda-se! A baixa autoestima cultural também se vê no mundo acadêmico.

Uma curiosidade: depois do falecimento de um cidadão, podemos adaptar a grafia do nome e sobrenome para a norma atual. Portanto, Raphael pode virar Rafael, sem estresse! Como diz meu amigo Jefferson (carinhosamente chamado por nós de Genésio), “Viver é fácil, nós é que complicamos”.

Eu e alguns amigos levantamos alguns nomes em listas, notícias e até obituários (sim, nossas crianças morrem) (veja a seguir). Um espetáculo de criatividade de uns e de gosto pra lá de duvidoso em outros; visto, é claro, pelo âmbito do idioma. Quando foi possível, procurei separar certos duplos ou triplos. Deixo ao seu engenho uni-los. Meus sinceros respeitos aos donos e meus protestos a alguns dos “adãos” de hoje.

Aia (no dicionário, veja o significado)
Albenirson
Aleçandro (a intenção da moça do cartório foi boa)
Aleksander (Alecsander, Alexsandre, Alexssander...)
Alessandro (você acha que ficaria de fora desta lista?)
Alexanderson
Carolinny (e derivados: Karollini, Karollyny, Carolliny...)
Cauan (e derivados: Cawã, Cauãm, Cauã...)
Cinddykelli
Cindy Kelly (a mãe pediu que as palavras fossem lidas juntas e rapidamente)
Cleidiney (também Kleydinney, Kleidinei, Creiddiney)
Clis Albert (achei também Chris Alberty e Crizalbertty)
Creydinei
Creópatra
Cristhynna (Kristtyna, Khristynna...)
David (em português, há muito tempo, não é mais necessário o “d” final)
Dedislayne (também Dedysllane e Dadislanny, obviamente tudo com pronúncia em inglês)
Diana (é claro que em pronúncia inglesa parecida com “Dæian”, e dezenas de derivados: Dyanne, Dianny, Dayane, Daiani, Deianne, Dayyanny...)
Dieghytto
Drynielle
Ednelson (também Edynewson)
Elleyr
Erectina
Eryk (e derivados Hériki, Ériki, Érickky, Heryky... os acentos foram por minha conta)
Farmy
Franklin (um brasileirinho da gema)
Gernerson
Gideone
Grayce
Grauciney
Greis Kele (e os nobres Creicikely, Greyciquelli)
Isabella Karolliny
Izabbely (e derivados Ysabella, Yzabelly...)
Jane Kelly
Jannaynnah (Janaína)
Jennyffer (Gennyfer...)
Jessyka (e derivados Géssika, Jhéssica, Jecica, Gecica)
Jhenifi
Jhonatanael
John Kennedy (é lógico que não poderia faltar um)
Jocycrey (Jocicley, Jociklei: quando eu puder, farei um comentário sobre este nome)
Kace (também Keici, Keyce, Keyccy...)
K.L.Jay
K.S.Jay (mesma família do anterior)
Kate Suellen
Kathlin (e também Kathllyn e muitíssimos outros derivados)
Kayanne
Kaylane Kerolin
Kellya (achei com a pronúncia Kélia e Kelía)
Kimberlly
Letisgo (pronuncia-se como o inglês “let’s go!”)
Leydianny (também Leidianne, Leydiano, Leidianno, Leyddyanne...)
Mardenson
Marllony
Marlon Filipy
Mayki
Maykssuel (e centenas de bilhões de derivados)
Maykou Jékson (é claro que o rei do pop não ficaria de fora!)
Mygnocca (Minhoca, em nossa pronúncia)
Nathanaelsson
Neon
Neviton (pronuncia-se Néviton)
Niccolly (e também Nicolly, Nycolli, Nyccolly...)
Nittyelli
Ozzeny
Paolette (masculino)
Pollyanna (Pollianny e trilhões de derivados que não caberiam aqui)
Rikelme Wilkker (e também Riquellmi, Riquelmmy...)
Rizzia
Ronald Hector (também Ronnaldy, Ronalddy...)
Ruan (derivado do espanhol Juan. Também vi Juán, Xuan, Ruwann)
Scoth Traback
Suenny (também Swene, Suweny)
Syndycley (e variantes Cindycley e Sindicrey)
Talysson
Thalles Fellippe
Víctor (não se deveria acentuar nesse caso)
Waldisney (inspirado em Walt Disney, mas com som de “v” no início; também achei Valdisnei e Ualddisney)
Walliton (também Wallyton, Wallitson...)
Wandeyrson (pronúncia inicial com “V”)
Yulária
Yzabbel (e derivados Isabbel, Ysabbel e até Usabell)
Zenoelson

Deixe seu comentário, contando se você conhece algum nome que merece entrar nessa lista. Também você pode dizer se gosta de seu nome ou se você irá se inspirar nesse rol.


* Professor, revisor de textos e especialista em Direito Público.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dica de leitura: veja outra cidade à sua frente

Alessandro Faleiro Marques

Recomendo o livro "Bairros pericentrais de Belo Horizonte: patrimônio, territórios e modos de vida", do qual eu fiz a revisão. Há uma coletânea de estudos interessantíssimos sobre os bairros que circundam o Centro de Belo Horizonte, a primeira cidade planejada do Brasil. Quem não é de BH também pode aprender muitas coisas sobre urbanismo e relações humanas. Vale a pena conhecer. A obra, organizada por Luciana Teixeira de Andrade e Michele Abreu Arroyo, é publicada pela Editora PUC Minas. Depois desse livro, nunca mais vi a cidade (ou melhor, as cidades) com o mesmo olhar. 

Veja mais:

- Página na Editora PUC Minas
- Notícia sobre o lançamento (setembro de 2012)


sábado, 21 de setembro de 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ruas “esquecem” a dívida pública

Alessandro Faleiro Marques*

Nas ainda enigmáticas manifestações de junho, todo mundo reclamou de tudo e em todo lugar. Mas parece que um tema ficou de lado ou entrou na antipauta dos grandes conglomerados de comunicação: a dívida pública brasileira.

Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã, contou à IHU On-Line, do Instituto Humanitas Unisinos, que quase metade do orçamento federal de 2013 era destinada ao pagamento da dívida pública brasileira. Isso representa, pelo menos oficialmente, 900 bilhões de reais para quitar juros e amortização. Para se ter ideia do estrago disso, 71,7 bilhões foram previstos para a educação, 87,7 bilhões para a saúde e 5 bilhões para a reforma agrária.

Assombrosamente, jamais essa dívida passou por auditoria, contrariando o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (veja abaixo). E as aberrações seguem. O pagamento dessa carga tem prioridade sobre todos os outros investimentos, segundo Maria Lucia. Quando falta o dinheiro para os credores, logo ele é tirado das reservas destinadas aos serviços essenciais, como educação, segurança, saúde e transporte públicos. Nesse ponto, FHC, Lula e Dilma leem quase na mesma cartilha, como os antecessores, desde a ditadura.

Para os críticos ou defensores do “Bolsa Família”, uma porção de pólvora para animar o assunto. No orçamento de 2013, o que se gastaria no programa social durante todo o ano corresponde apenas a nove dias de encargos com a dívida. O programa pretendia atingir a 13,5 milhões de famílias, por outro lado, pouquíssimas instituições financeiras daqui e de fora, detentoras dos títulos, receberiam a gigantesca fatia do bolo. Maria Lucia Fattorelli, de forma precisa, chama a esse pagamento “bolsa rico”. O pior, nada garantiria o uso de todos os 22 bilhões previstos para o Bolsa Família, pois poderiam ser bloqueados para aplacar a ira dos credores.

Quanto os investimentos em educação, o orçamento de 2013 programou 71,7 bilhões de reais. Isso é 12 vezes menor do que o valor voltado para a dívida e 1,44% do PIB projetado para este ano. Já mandaram avisar: os sonhados 10% do PIB para nossos educadores e estudantes devem ser alcançados só em 2023. Mais gasolina no fogo: míseros 9,3% são destinados a estados e municípios, esferas mais próximas do povo. A maior parte dos gastos na educação é financiada justamente por essas esferas. Com esse modelo, é difícil crer num sólido desenvolvimento do Brasil.

Apenas 24,57% da dívida têm juros atrelados à taxa Selic, a outra parte tem índices ainda maiores e totalmente controlados pelos bancos e desfavoráveis a nós. Como sou das Letras e não dos números (mas não menos cidadão por isso), menciono que há uma série de outras manobras contábeis e retóricas, todas graves e denunciadas por Maria Lucia e por instituições dedicadas a essa causa. Eu quase ia esquecendo: na primeira metade de 2012, a dívida interna alcançou 2,74 trilhões de reais (trilhões!), e a externa, 416 bilhões de dólares.

O tema, como se vê, é amplo, mas fundamental para se direcionarem os debates. Protestar contra o neoliberalismo, o capitalismo, a corrupção, o governo é generalizado demais e pouco produtivo. Um verdadeiro néctar ideológico para os dominadores. Conforme progredirem os acontecimentos, é bom todos nós ajustarmos o foco e não nos esquecermos de que já nascemos devedores de alguma coisa, até de dinheiro.

O que diz o artigo 26 dos ADCT (ano de 1988)

Art. 26. No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.
§ 1º - A Comissão terá a força legal de Comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
§ 2º - Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.


Em outro artigo, mostrarei o resultado da corajosa auditoria na dívida do Equador. Surpreendente!


* Alessandro Faleiro Marques é especialista em Direito Público, professor e revisor de textos.


sábado, 14 de setembro de 2013

Aparição ou assombração?

Alessandro Faleiro Marques

Realmente há muita ovelha perdida por aí. Agora uma tal Fraternidade e outros promoters esotéricos andam agendando "aparições" da Virgem Maria por todo lado. Precisa ver o monte de gente, principalmente de católico meia-boca, aglomerou-se para assistir ao "fenômeno". 

Pessoal, não perca tempo! Vá para casa e assista ao futebol e até à "bendita" novela. De repente, rola até de passar num botequinho e tomar uma gelada. Com certeza, se a companhia for boa, os ganhos espirituais serão muito mais proveitosos. Quem gosta de ver mágica, que tal ir a um circo? Não seria melhor valorizar um artista?

Em tempo: quem quiser saber o que Maria tem a dizer e, o melhor, ver o exemplo que ela nos deixou, basta consultar os Evangelhos. Se tiver tempo e curiosidade suficientes, veja também os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse. Está tudo lá!

No mais, estou achando é que essa gente anda vendo mesmo é assombração! Cruz credo, ave Maria!

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Uma relíquia na torre


Alessandro Faleiro Marques

Nestes cem anos, a Matriz de Nossa Senhora do Carmo tem sido um cenário privilegiado onde Deus e homens se escutam. As largas paredes do imponente templo de Carmo do Cajuru, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, são testemunhas de quantos ali se fizeram santos por meio do Evangelho ecoado pelas vozes de presbíteros, da rústica doçura do coral litúrgico, do perfume solene do incenso e da luz devota das velas.

Poucos, porém, conhecem um segredo marcado na torre. Em um canto privado da luz do sol e dos olhares piedosos dos cajuruenses, há uma relíquia de um desses santos formados em nossa paróquia-mãe. Uma lembrança deixada em 1980 por um humilde jovem está grafada na parede interna voltada para o sudoeste, na altura do telhado da nave central. Nesse lugar, lê-se “Gerson”, simplesmente.

Algumas vezes, tive o privilégio de subir pela torre, chegar perto dos sinos e contemplar, do alto, a vista da cidade. Maior honra, contudo, foi ver a lembrança deixada por aquele jovem operário, ajudante de meu pai e amigo de toda a minha família. Uma espécie de pequeno oratório nosso dentro da igreja centenária.

Esse rapaz, há muito “canonizado” por nós, trabalhou como servente de pintor na reforma da matriz, promovida pelo cônego João Parreiras Villaça bem no final da década de 1970. Era alegre, de voz suave, corpo magro, pele e cabelos claros.

Uma tragédia, contudo, tornou nublado um dia de folga. Uma arma de chumbinhos, disparada acidentalmente ao cair no chão, levou o sofrimento ao moço, na época, com 17 anos. Ele lutou pela vida durante muitos dias no Hospital São João de Deus, em Divinópolis. Jesus o quis presente na reforma do templo físico e também na sua própria Paixão divina. Gerson não carregava mais escadas ou latas de tinta, mas o próprio peso da Cruz. Num úmido início de noite de outubro de 1981, com intensa agonia, ele nos deixou. Tudo estava consumado.

A agonia de Gerson Santil, filho de família bondosa do Bairro Bonfim, deixou muito comovidos a nós e ao próprio cônego João. Lembro-me do célebre pároco presidindo a missa de corpo presente dentro daquele templo que o trabalhador pouco antes ajudara a embelezar. Um homem canonizado pelo povo saudava outro santo do próprio povo. Uma história grandiosa, mas silenciosa, como são muitos dos mistérios de Deus. Hoje, lá na torre, na singeleza de umas pinceladas, está o nome de um anjo, profeticamente representando outros milhares de anônimos que, rodeados por essas paredes, salvaram-se para Deus.

Um dia, algum desavisado pintor apagará a inscrição, até há pouco respeitada pelos colegas que participaram das reformas nas décadas seguintes. Outra profecia de um evangelho do cotidiano: as coisas deste mundo passam, mas não o nome dos que vivem em algum lugar do coração de Cristo, o Templo Vivo.

* Dedico esse texto à família e amigos de Gerson, e aos trabalhadores de Carmo do Cajuru, meus conterrâneos.



Compus esse texto para o concurso do centenário da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, celebrado no dia 15 de setembro de 2012, em Carmo do Cajuru-MG. Nesse templo, eu e muitos de meus parentes atuais e ancestrais fomos batizados. Ouvi dizer que fui desclassificado porque eu falava somente da torre e não do templo (rsrsrs). Acho que, com o dedo errado, mostrei a Lua. Seja como for, viva minha terra!


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A Veja, o MST e a minha formação

Eduardo Sabino*

Na semana passada, entre goladas de cerveja, alguém me falou sobre investimento em educação, e me lembrei de que o governo de São Paulo renovou milhares de assinaturas da revista Veja para escolas da rede estadual. Outro dia, na tevê, a Dilma falou sobre investimento na educação, e me lembrei de que o governo paulista renovou milhares de assinaturas da revista Veja para escolas públicas de São Paulo. Hoje, no Facebook, alguém falou sobre o danado do investimento, tão desgraçadamente necessário, e me veio à cabeça, mais uma vez, os exemplares da Veja chegando às escolas.

Há quem enxergue essa situação sem revolta e angústia. Afinal, a revista não entra sozinha na biblioteca escolar. Trata-se de uma opção, uma narrativa de mundo a mais. Compete ao professor, caso decida usá-la, fazer isso de modo crítico, multifacetado, produtivo.

E quando isso não ocorre?

Regresso dez anos no tempinho que já gastei por aqui e caio exatamente no final do ensino médio, na escola pública onde estudei. Penso no significado dessas revistas numa época não tão distante. Meu colégio comprava ou recebia gratuitamente exemplares, e a leitura era incentivada nos trabalhos letivos.

Recordo os cartazes com recortes de reportagens, os debates em sala de aula, a explanação dos professores. Tive bons educadores, que seguiam por caminhos amplos, mas, para muitos, a Veja era um recurso pedagógico dos mais confiáveis.

Havia casos de possessão. As ideias da revista Veja se personificavam no meu ex-professor de Geografia. Quem não crê na “teoria da bala mágica”, na qual a mensagem midiática atinge o cérebro do receptor como uma bala certeira, sem resistências, deve abrir ao menos uma exceção para esse cara. Levava a Veja pelos corredores como um crente com a Bíblia debaixo do braço. Contra a revista não se emitiam argumentos.

Detinha um jeito de super-homem, um poste jogando luz em formigas. Não aceitava ser interrompido. Perguntas eram postas pelo palestrante em dois blocos: o das coisas que ainda seriam comentadas e o das que já foram faladas e não receberam a devida atenção do aluno com dúvidas. “Pergunte aos seus colegas. Quem pode explicar para ele?”. E dá-lhe papagaios com a mão erguida.

Discussões? Não havia espaço para isso. Se o questionamento persistisse, ele oferecia o giz ao aluno rebelde, colocava o posto à disposição e acabava logo com a teimosia do infrator. “Quem é o professor aqui?” Se brotasse uma conversa paralela, nem que fosse sobre o conteúdo da aula, ele se sentava para folhear a famigerada revista. Seguia lento e tranquilo, até estarmos todos em silêncio. O silêncio das folhas em branco.

Sobre o MST, aprendemos a cartilha da Veja. O problema do Movimento dos Sem-Terra passava longe da reforma agrária (e da falta dela), da concentração de terras nas mãos de latifundiários, da Constituição da República, na qual o direito à moradia e a sobrevivência está à frente do direito à propriedade.

O problema do MST era o próprio MST. Disputas internas, vandalismo nos protestos e “oportunismos típicos do jeitinho brasileiro”. Para entendermos melhor, o professor X desenhava no quadro os sem-terra como bonequinhos com enxadas nas mãos. “Vamos supor que esse fulaninho aqui ganhou o seu terreno. Ele se dá por satisfeito? Não, ele volta ao movimento.” Não ocorria jamais ao papagaio da Veja o quanto o movimento se enfraqueceria se os “oportunistas” o abandonassem ao receberem seus benefícios.

Nenhum fenômeno sobrenatural acontecia para mostrar como aquele cara estava errado. A aula era uma rua sem saída. Saíamos dela mais ignorantes e preconceituosos. Como questionar? Havia uma relação de confiança com o texto profissional. Livros, jornais e revistas eram apresentados como suportes da verdade. Se estava escrito, estava certo.   

A vida também pode ser um processo de desintoxicação mental. E tive a sorte de conhecer amigos, livros e professores que me ajudaram a enxergar as coisas de forma menos superficial.

Fechados os parênteses da experiência pessoal, digo, sem medo: não chego a dar pulos de alegria quando falam em investimento educacional. Quase sempre se referem à educação como essa máquina de tornear peças para o mercado e fazer as mercadorias circularem. A educação que forma trabalhadores, consumidores, e às vezes deixa escapar, como defeito de fábrica, um sujeito pensante. Uma educação para o mercado, fechada para o restante do mundo, longe de contribuir para a emancipação do homem.

Dito isso, desejo melhor sorte aos moleques das milhares de escolas abastecidas com a revista Veja. Que a internet e seus compartilhamentos de boas ideias ajudem vocês a ridicularizem um possível professor de Geografia alienado e metido a besta. Que o exemplar da Veja, novinho, recém-chegado na biblioteca da escola, permaneça no plástico, isolado em cofre de chumbo, e não contamine ninguém.


* Escritor e jornalista.



terça-feira, 10 de setembro de 2013

“Os menino travesso tá jogano bola!”

Alessandro Faleiro Marques*

O título deste texto fala de um ou mais “menino”? Se você disse que ele se refere a pelo menos dois moleques, você está correto. Agora, tente responder à próxima pergunta: em qual idioma foi escrito o título? Se você disse português (vale brasileiro), acertou de novo. Sim, a frase no título mostra uma manifestação oral do português brasileiro. Mais uma surpresa: ela está dentro dos modelos de uma gramática. Isso mesmo! E você pode ficar tranquilo (talvez) porque ainda estou em meu juízo.

Para a tristeza de alguns poderosos, a gramática não é apenas aquele livro pesado, cheio de regras, exceções e notas de rodapé. Existe em todos nós uma gramática interna, às vezes muito diversa daquela que somos obrigados a comprar e a venerar nas aulas de Língua Portuguesa por aí. E o mais chocante (menos para os cientistas da linguagem): essa estrutura “genética” costuma ser mais bem bolada e prática do que aquelas listas de normas estudadas por nós somente porque serão cobradas em provas; vide os abstratos regulamentos de colocação pronominal, alienígenas ao uso brasileiro.

Na área linguística, a sabedoria popular tem muito valor, como deveria ser em todas as outras. Note que, na frase, o falante usou o plural apenas no artigo “os”. Isso bastou para toda a ideia se remeter facilmente à existência de mais de um agente na oração. No português formal, imprecisamente chamado de “português certo”, a estrutura seria bem diferente: “Os meninos travessos estão jogando bola!”. Se, na primeira, apenas uma palavra foi para o plural, na segunda, houve concordância em quatro delas. Nem sempre o mais complicado é o mais avançado. Que o digam os mecânicos.

Em uma língua, a lei do menor esforço não é necessariamente a da preguiça. O fenômeno é levado muito a sério e, com outros elementos, também explica algumas alterações em “jogano”, no lugar do gerúndio formal “jogando”, e “tá”, em vez de “está” (ou “estão”, na conjugação formal). Isso ocorre no desenvolvimento de nosso idioma: o latino “horologĭum” virou “relógio”, e ninguém questiona a forma deste último. Como se esquecer aqui do clássico “Vossa Mercê” para “você”?

Um mero “certo ou errado” como argumento numa área imprecisa e bela como a da língua reduz muito as possibilidades de ampliar a reflexão dessa ciência. Mais do que corrigir o outro, o ideal é estudar o motivo de alguém falar deste e não daquele modo. Há muitas razões. O certo mesmo é buscar entender o fenômeno. Posso lhe garantir: há um tesouro a ser descoberto, expondo nosso contexto atual, o nosso passado e até como será com nossos descendentes. A chave para esse baú é o não preconceito e o desejo de se ter mais sabedoria do que só inteligência.

Em outra oportunidade, refletirei um pouco sobre a ideia de “português culto”.


* Professor, redator e revisor de textos.



Literatura: conheça “O coração do Tártaro”



Alessandro Faleiro Marques

“Eu te encontrei.” A frase breve ao telefone obriga Zarza, uma editora de livros medievais, a voltar a tempos, lugares e situações aos quais ela evita há muito tempo. “O coração do Tártaro”, da escritora, jornalista e filósofa espanhola Rosa Monteiro, é um romance que mostra que a escuridão e o próprio inferno estão mais próximos do que se imagina. Ao longo do livro, os misteriosos telefonemas não param e levam a protagonista a um mundo cada vez mais caótico, mas seu, forçando-a dolorosamente a uma nova oportunidade. Rosa Montero consegue uma interessante combinação entre bem escolhidas histórias medievais e o enredo do romance. Mesmo com o clima cinzento, a obra tenta levar o público a acreditar que um raio de luz é possível a quem não lhe fecha os olhos.

MONTEIRO, Rosa. O coração do Tártaro. Barcarena (Portugal): Editorial Presença, 2003. 209 p.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Começa é assim... o Dia do Irmão

Alessandro Faleiro Marques

Esse tal de Dia do Irmão (5 de setembro) está me cheirando armação para movimentar a máquina econômica. Ocorreu o mesmo com o Dia das Mães, das Crianças, dos Pais, dos Namorados e até o Natal. Começaram em abraços, cartões, flores e terminaram em corre-corre e tumulto em lojas. Não nos esqueçamos de que este início de setembro é meio morto para o comércio. Perdoe-me o chavão, mas irmãos (e mulheres, pais, avós, crianças, mães...) devem ser homenageados o ano inteiro.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Jovens engajados, imprensa e JMJ

Jovens de pastorais sociais participam do
Grito dos Excluídos, em 7 de setembro de 2012, em São Paulo-SP


Bem que eu notei que faltava alguma coisa... Na Jornada Mundial da Juventude, os veículos de comunicação registraram a grande festa dos jovens no Rio de Janeiro. Muita dança, som alto, olhinhos fechados e mãozinhas pra cima louvando e aplaudindo a Jesus. Alguma coisa me fazia perguntar onde estariam os jovens das pastorais sociais da Igreja. Por onde andariam, na Jornada Mundial da Juventude, os engajados nas pastorais afro-brasileira, indígena, da terra, da juventude, da criança, operária, da saúde...? Até que, tarde da noite, um jornal da Rede Pública de Televisão (repito, Rede Pública) mostrou que, felizmente, esses nossos irmãos estavam lá. Com bandeiras dos respectivos grupos e do Brasil, cruzes e faixas, protestavam profeticamente contra as injustiças em nosso País. Não vi nada deles nas emissoras católicas e muito menos nas grandes emissoras (é claro!). Estou feliz por ser irmão desses jovens que denunciam as trevas e anunciam a luz. Esses, sim, às vezes silenciosos e quase sempre silenciados, enchem-me de orgulho de ser cristão e explicam verdadeiramente por que nosso Papa tem nome de Francisco. Pronto, falei!