terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ruas “esquecem” a dívida pública

Alessandro Faleiro Marques*

Nas ainda enigmáticas manifestações de junho, todo mundo reclamou de tudo e em todo lugar. Mas parece que um tema ficou de lado ou entrou na antipauta dos grandes conglomerados de comunicação: a dívida pública brasileira.

Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã, contou à IHU On-Line, do Instituto Humanitas Unisinos, que quase metade do orçamento federal de 2013 era destinada ao pagamento da dívida pública brasileira. Isso representa, pelo menos oficialmente, 900 bilhões de reais para quitar juros e amortização. Para se ter ideia do estrago disso, 71,7 bilhões foram previstos para a educação, 87,7 bilhões para a saúde e 5 bilhões para a reforma agrária.

Assombrosamente, jamais essa dívida passou por auditoria, contrariando o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (veja abaixo). E as aberrações seguem. O pagamento dessa carga tem prioridade sobre todos os outros investimentos, segundo Maria Lucia. Quando falta o dinheiro para os credores, logo ele é tirado das reservas destinadas aos serviços essenciais, como educação, segurança, saúde e transporte públicos. Nesse ponto, FHC, Lula e Dilma leem quase na mesma cartilha, como os antecessores, desde a ditadura.

Para os críticos ou defensores do “Bolsa Família”, uma porção de pólvora para animar o assunto. No orçamento de 2013, o que se gastaria no programa social durante todo o ano corresponde apenas a nove dias de encargos com a dívida. O programa pretendia atingir a 13,5 milhões de famílias, por outro lado, pouquíssimas instituições financeiras daqui e de fora, detentoras dos títulos, receberiam a gigantesca fatia do bolo. Maria Lucia Fattorelli, de forma precisa, chama a esse pagamento “bolsa rico”. O pior, nada garantiria o uso de todos os 22 bilhões previstos para o Bolsa Família, pois poderiam ser bloqueados para aplacar a ira dos credores.

Quanto os investimentos em educação, o orçamento de 2013 programou 71,7 bilhões de reais. Isso é 12 vezes menor do que o valor voltado para a dívida e 1,44% do PIB projetado para este ano. Já mandaram avisar: os sonhados 10% do PIB para nossos educadores e estudantes devem ser alcançados só em 2023. Mais gasolina no fogo: míseros 9,3% são destinados a estados e municípios, esferas mais próximas do povo. A maior parte dos gastos na educação é financiada justamente por essas esferas. Com esse modelo, é difícil crer num sólido desenvolvimento do Brasil.

Apenas 24,57% da dívida têm juros atrelados à taxa Selic, a outra parte tem índices ainda maiores e totalmente controlados pelos bancos e desfavoráveis a nós. Como sou das Letras e não dos números (mas não menos cidadão por isso), menciono que há uma série de outras manobras contábeis e retóricas, todas graves e denunciadas por Maria Lucia e por instituições dedicadas a essa causa. Eu quase ia esquecendo: na primeira metade de 2012, a dívida interna alcançou 2,74 trilhões de reais (trilhões!), e a externa, 416 bilhões de dólares.

O tema, como se vê, é amplo, mas fundamental para se direcionarem os debates. Protestar contra o neoliberalismo, o capitalismo, a corrupção, o governo é generalizado demais e pouco produtivo. Um verdadeiro néctar ideológico para os dominadores. Conforme progredirem os acontecimentos, é bom todos nós ajustarmos o foco e não nos esquecermos de que já nascemos devedores de alguma coisa, até de dinheiro.

O que diz o artigo 26 dos ADCT (ano de 1988)

Art. 26. No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.
§ 1º - A Comissão terá a força legal de Comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
§ 2º - Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.


Em outro artigo, mostrarei o resultado da corajosa auditoria na dívida do Equador. Surpreendente!


* Alessandro Faleiro Marques é especialista em Direito Público, professor e revisor de textos.


Um comentário:

Anônimo disse...

Na diplomacia as palavras são muito bonitas, mas os números não desmentem a chibata. Ótimo trabalho de apuração, Faleiro. A dívida mantém as coisas como são. E ponto. Nós, países pobres e devedores, produzimos as tais riquezas para serem abocanhadas pelos mesmos caras que levaram nosso ouro, desmataram nossas matas e exploram, desde sempre, nossos recursos e mão-de-obra.

Só não acho que a “dívida externa” está de fora das ruas. Ficou de fora do que foi televisionado, talvez. Mas há muito tempo vejo certos movimentos sociais e partidos tentando colocar o tema em pauta na mídia e levando essa “bandeira” para as ruas. Abraço. Eduardo Sabino.