terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Paraíso desde já: duas visões sobre a dor

*Alessandro Faleiro Marques

Hoje, o sexo já não é mais o principal tabu, mas sim as coisas ligadas à doença e à morte. Poucos frequentam com espírito sereno um ambiente de exceção, como um hospital, por exemplo. No contexto cristão, contudo, a dor tem um sentido interessante. Diferente da sociedade da produção, na qual o enfermo muitas vezes é visto como um peso, uma “peça defeituosa”, no cristianismo, aquele que sofre tem uma incumbência singular e, ao mesmo tempo, desafiadora para todos.

Para entender um dos olhares cristãos da dor, voltemos a uma célebre sexta-feira de quase dois mil anos atrás, em Jerusalém. Depois de passar por um dos julgamentos mais questionáveis da História, Jesus foi condenado a morrer na cruz. Segundo o evangelho, durante o caminho do Messias ao calvário, os soldados obrigaram um homem que voltava do campo a carregar o pesado madeiro, pois temiam que o Salvador não tivesse condições de chegar ao final do sinistro itinerário. Mesmo forçado, Simão, da cidade de Cirene (por isso conhecido como Cirineu), ajudou o Cristo a cumprir a Via Dolorosa e, assim, acabou tendo o nome imortalizado na história cristã da salvação (cf. Mt 27,32; Mc 15,21; Lc 23,26).

É possível fazer um paralelo entre o esforço daquele agricultor e o dos doentes. Uma linha teológica diz que os sofredores em geral, entre eles os enfermos, são aqueles que, ainda hoje, ajudam Cristo a carregar a cruz. Como Cirineu, que fez uma “caridade” sem querer, quem chora com a dor não quer passar por ela, mas ganha esse compromisso. Certamente, numa perspectiva de fé, como aconteceu com Simão, é reconhecido por Deus. Em outras palavras, o “dolente” (ou seja, aquele que sente dor) seria da “tropa de elite” divina. Participa do sacrifício messiânico em um dos momentos mais importantes.

Diferente do que acontecia há séculos, a dor não é mais tão destacada, mas sim a ressurreição de Jesus, a vitória sobre o tormento. A gente piedosa, porém, continua identificando-se com a agonia de Cristo. Basta ver que a cultura religiosa popular católica, especialmente a latino-americana, por exemplo, enfoca mais a Sexta-feira da Paixão do que a Páscoa.

O bom cristão, no entanto, não é conformista. Já neste mundo, ele tenta implantar o Reino celeste esperado e prometido. Na lógica da fé, não há dor no Paraíso. Por isso, quem realmente segue os ensinamentos de Jesus não admite sistemas de saúde precários, deficiência na prevenção e descaso contra os enfermos e profissionais que deles cuidam. Essa é a outra forma de o cristianismo ver a dor. A mortificação violenta voluntária, como faziam os antigos místicos, hoje tem pouco sentido.

A luta “para que todos tenham vida e em abundância” (Jo 10,10) é uma legítima tarefa cristã. O próprio Cristo tinha grande compaixão pelos sofredores, e não é difícil achar trechos dos evangelhos em que Ele cura, conforta, alivia o sofrimento físico e espiritual. Ele é o próprio exemplo para seus seguidores fazerem multiplicar, desde hoje, a alegria eterna, numa terra sem males (pelo menos os evitáveis), sem se esquecer da dignidade dos que sofrem.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).