sábado, 5 de março de 2011

Tiririca, o Sério

Alessandro Faleiro Marques*

Talvez pela costumeira falta de foco, incompetência ou por “ordens superiores”, a imprensa nacional e até a estrangeira estão apontando excessivamente os holofotes para o deputado federal que mais ganhou votos no Brasil, o Dr. Francisco Everardo Oliveira Silva, o palhaço Tiririca. Nos últimos dias, as jocosidades diárias ganharam fôlego depois de o Dr. Tiririca estrear na Comissão de Educação e Cultura da Câmara. Logo ele, dizem alguns, suspeito de ser analfabeto e ter de passar por um exame para comprovar o conhecimento da língua que ele e nós usamos desde pequeninos.

A Carta de 1988 reforçou o direito de cidadãos se candidatarem a cargos eletivos, respeitados alguns requisitos. Jornalistas, comentaristas e pseudointelectuais estão com as lentes viradas para um único lado. Doutor Tiririca, sustentado pela norma legal e moral, apenas exerceu seu direito. Candidatou-se e foi votado. A maioria de nós tem essa prerrogativa. Por parte desse artista, não houve coação de eleitores, abuso de poderes econômico e político, sequer tinha a ficha suja, segundo os novos modelos (pelo menos até agora).

Mais do que fazer chacota do parlamentar, os palpiteiros, profissionais ou não, deveriam começar a analisar quem o mandou para Brasília: as centenas de milhares de eleitores paulistas, muitos certamente nascidos nos mais diversos cantos deste País. Gente que desconhece a importância do processo democrático e vota por votar. Pela democracia é que estamos assistindo ao sangue jorrar em várias partes do mundo, em especial no Oriente Médio e Norte da África. Brincar com ela é zombar, e isso não tem graça.

Sua Excelência disse que defenderá os direitos dos palhaços e apoiará a causa dos circos. Lembro-me de que o caos em que se encontravam esses locais de diversão foi tema até de um Globo Repórter. Alguém tem dúvidas de que o espetáculo circense é uma louvável face de nossa cultura?

Questiono os motivos de não haver o mesmo rigor com outros políticos, inclusive os escolhidos em outros tempos. Os palácios por este Brasil estão cheios de “artistas”. De dono de castelo encantado a driblador, dos que se acham deuses, grandes dançarinos ou cantores aos sonhadores (talvez estes sejam até necessários), dos mágicos aos vilões. Numa democracia, deve-se lembrar de quem foi votado e de quem votou, e ambos devem cobrar e serem cobrados.

Doutor Tiririca, à Vossa Excelência os meus respeitos.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O cavalo que era burro

Alessandro Faleiro Marques*

Aquele quadrúpede ali, de boca requebrante a moer o capim. Quem o vê nem imagina o que o bicho já fez pelo bairro, talvez pela cidade. Não sabe, mas hoje é o último expediente dele e do dono no serviço de entrega de uma loja de materiais de construção. Enfim saiu a aposentadoria. Não sabe.

Sempre pronto, do seu jeito, acha que ainda hoje carregará mais algum peso no veículo atrelado ao dorso. Meio cansado, meio disponível, rói o milho que acaba de ganhar do velho homem, com quem trabalhou uns bons anos. Parece estranhar o quitute raro, afinal não estava muito acostumado com algo além do capim cortado nos cada vez mais raros lotes vagos pelo caminho.

Inverbalizado, sente que o dono está estranho, falando mais baixo, bem diferente dos roucos gritos pré-chicote, outrora mais vigorosos. Ganha um inédito afago de dois homens, os mesmos de sempre, que costumam colocar na carroça aquilo que ele deve carregar. Também, hoje, conversam leve.

O mamífero orelhudo, meio censurado pelas viseiras, viu as ruas dali se alterarem. Aos poucos, foram sumindo os atoleiros e alisando-se o piso. O antigo silêncio, algumas vezes quebrado por algum moleque, cantar de galo ou martelar, foi dando lugar ao ruir de motores, depois às sirenes e até aos estalares estranhos aos seus ouvidos. Estes últimos, notava sem muita pretensão, eram quase sempre seguidos de gritos, de mais roncos mecânicos e, logo em seguida, de apitos de emergência. Nunca escondeu de ninguém ser os estampidos cheirando a enxofre os mais a incomodá-lo, sendo responsáveis pelos quase acidentes e açoites mais nervosos do velho que agora o dá outra espiga.

Ele não sabe, mas deveria ganhar uma estátua ou pelo menos uma placa lá na pracinha, cuja grama já lhe foi mais abundante. É o último dia. Ninguém reconhece, mas o cavalo é quem ajudou a construir a comunidade. As viseiras o impedem de entender isso. Coitado!


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).