quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O crime do papel colorido

Alessandro Faleiro Marques*

Chegara o dia. Casa vazia. Os filhos e os netos viajando, como previra. Nos últimos tempos, a senhora, respeitável, andava com um semblante de leve mudado. Não era uma linha a mais do bisturi do tempo, tampouco o prenúncio de outro ataque aos rins, evento comum desde que perdeu o marido. Pelo contrário, a senhora espichava mesmo era um sorriso no rosto. Atrevido tal vilã de novela das seis. Se a filha mais velha fosse menos voada, certamente notaria alguma coisa para acontecer.

Exímia cozinheira, a doninha andava demonstrando certa preguiça em manipular os temperos, substâncias quase mágicas em suas mãos. Havia um certo silêncio pela casa. Aumentou-se apenas o ruído das pancadas estranhas e impacientes nas panelas. Multiplicaram-se as quedas dos copos de vidro. Outrora zelosa, não evitou que o ferro queimasse a camisa do filho. Nem se importou com o esbravejar do rapaz. Antes isso era motivo de lágrimas pseudorresignadas; agora, o palavreado servia apenas para desentupir os ouvidos cansados. Até uma janela esqueceu aberta, fugindo do senso comum de muitos idosos. De notório, maquinava algo.

Acordou diferente na sexta-feira. Mais tarde. Bem depois do nascer do sol. Enfim, hoje, poria real o projeto. A casa só dela. Olhava amiúde no relógio. Para si, contentou-se em esquentar apenas um arroz com meio ovo mexido. Nada mais. Vez ou outra, consultava de rebarba na gaveta um papel colorido. Mais tarde, ela o colocou na frente do avental limpo. As horas custavam. Naquele dia, não estava incansável. Deixou-se aconchegar no sofá. Cochilou. Pulou cinco minutos depois, talvez seis.

Despudoradamente, tirou o papel do bolso. Pelo ritmo aumentado dos movimentos, o tempo parecia chegar. Sol escondido. Janela agora cerrada. Respirou fundo. Deu um passo rumo ao telefone. Respirou de novo, curto. Mais um passo. O descarado papel estava todo aberto agora. Procurou nele o círculo marcado de caneta falha quinze dias antes. Logo acima, outro sinal, sobre um número. Sentou-se ao lado do telefone. Aprendera a usar o aparelho aquelas semanas, vendo de longe os netos. Tirou do gancho. Respirou forte. Conferiu o rabisco. Discou. Silêncio. Espera. “Quem fala?” “Olá, senhora! A que devo a honra da novidade?” “Filho, faça o favor, mande para mim agora o sanduíche número sete e capriche no defumado.”


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

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