Alessandro Faleiro Marques*
Em vários contextos e por motivações diferentes, está havendo uma
campanha contra os crucifixos. Algumas autoridades dizem que o Estado é
laico (conceito quase sempre confundido com "ateu") e, nas dependências de suas instituições, não deve haver símbolos religiosos. Os incrédulos já procuram outro “enfeite”, e até os
religiosos andam trocando o crucifixo no pescoço por um potente pen
drive, talvez mais útil para eles nestes tempos pós-modernos.
Dias atrás, em um curso (muito proveitoso, diga-se), ouvi de um religioso que, na nova
configuração dos templos católicos, tende-se a um destaque aos ícones do
Cristo ressuscitado, substituindo as cruzes colocadas segundo as
atuais normas litúrgicas. O foco em Jesus vitorioso sobre a morte é
justíssimo entre os cristãos, afinal é o evento mais célebre dessa fé.
Preocupa-me, porém, outro ponto da pendenga.
A palavra “sacrifício” tem origem no latim “sacrificium” (“sacer”:
sagrado; “facere”: fazer), ou seja, fazer sagrada alguma coisa. O
paralelo com o pensamento pós-moderno foi inevitável. Neste início de
milênio, o individualismo, o prazer instantâneo, a pressa irracional e o
excesso de informações fragmentadas nos sufocam e, ao mesmo tempo, envolvem-nos. De repente, estamos nós a propagar valores questionáveis.
Quando nos damos conta, já somos parte ativa do "sistemão". Virou coisa do passado esforçar-se
pacientemente para realizar um sonho, dar um passo de cada vez.
Se os seguidores de Cristo comemoram a Páscoa, a ressurreição do Ungido,
é porque, antes, houve a morte dele. A cruz era, no Império Romano, um
instrumento de terror usado para executar pessoas extremamente perigosas
para aquele sistema; e Jesus era uma delas. Os primeiros cristãos a
rejeitavam como símbolo, pois conheciam de perto o que ela representava.
Era sinal de medo e vergonha. Só mais tarde, talvez no século III, a
cruz ganhou uma conotação religiosa, celebrando a passagem de Jesus por
ela para tornar sagrado o seu projeto.
A atitude de ignorar a cruz hoje pode reforçar algumas injustiças. Se
vale somente o Jesus ressuscitado, já pronto, nesta nova concepção,
doentes, encarcerados, miseráveis e outros excluídos podem ser
esquecidos inclusive pelos cristãos mais distraídos. Será um incremento
à “teologia da prosperidade” (outro reflexo do atual hedonismo),
segundo a qual só os que possuem são os abençoados.
Ignorar os marginalizados, certamente representados naquele crucificado,
é dar outro golpe no Deus que “sacia de bens os famintos e despede sem
nada os ricos” (Lc 1,53). E mais: a sociedade do descartável agradece;
agora tem outra boa ideologia para justificar-se. Enfermos, idosos,
crianças, desempregados, analfabetos serão aterrados, pois não produzem e
nem compram, são peças quebradas, inúteis nas engrenagens insaciáveis
do “mercado”, feito de carne e osso.
Mesmo quem não professa o cristianismo ou qualquer outra fé deve
refletir sobre essa onda de jogar para debaixo do tapete o sangue, o pó, a tortura, o sofrimento divino e humano ao mesmo tempo. Isso
pode refletir-se em valores que transcendem escolhas espirituais e
afetar a vida de todos. Nós também precisamos do Deus imundo e
ensanguentado.
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).
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