quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O Deus de “A Cabana”

Alessandro Faleiro Marques*

Como a literatura brasileira, com exceções, anda vivendo basicamente de autoajuda e relançamentos, “A Cabana”, mais uma obra internacional, movimenta as livrarias do Brasil. Depois do sucesso de “O Código da Vinci” e “Anjos e Demônios”, a religião volta a atiçar a curiosidade do leitor. “A Cabana”, do escritor canadense William P. Young (Editora Sextante, 2008. 240 p.), retoma a velha e bem-sucedida fórmula de colocar frente a frente Deus e o ser humano.

Depois do assassinato da filha, Mackenzie Allen Phillips (ou Mack, como é chamado no livro), típico americano de classe média, recebe um bilhete assinado por “Papai”. Não resistindo ao convite, o protagonista (humano) decide passar um final de semana no lugar indicado, a floresta onde teria sido morta a caçula. Numa cabana abandonada, que ganha um novo cenário, digno de uma aparição divina, ele tem um diálogo impressionante com as três pessoas da Santíssima Trindade: “Papai”, Jesus e Sarayu. Como em qualquer boa conversa com Deus, Mack passa por um envolvente processo de questionamento e purificação.

Quem imagina o Senhor de barba longa, camisola branca e com cara de bravo vai decepcionar-se. O livro resgata o Abba, o Papai de Jesus, algo que, há dois milênios, o Salvador nos ensinou a fazer, apesar de muitos ainda resistirem à ideia.

Em “A cabana”, “Papai” é uma senhora negra, bonachona, uma mãe boa de conselhos e de cozinha. Nada que os cristãos de verdade não deveriam já saber. O Papa João Paulo I, mesmo governando a Igreja por 34 dias, em 1978, deixou como legado espiritual a ideia de Deus Pai e Mãe ao mesmo tempo. Obviamente, Mack, como a maioria dos fiéis, custa a acostumar-se com aquela figura. Ponto para o autor. Sarayu, a moça oriental de atitude leve, é uma boa representação do Espírito Santo. Ela é jardineira, encantada, livre. Onde ela está, sempre há perfume, ar. A palavra “espírito” significa brisa, sopro, vento. “O vento sopra onde quer”, já dizia São João (Jo 3,8), e Sarayu é assim. Em boa parte do enredo, é uma figura estranha para o convidado. Com feições orientais, Jesus é um marceneiro, companheiro físico e espiritual de Mack. Em relação ao Redentor, parece haver menos estranhamento da parte do visitante. Pudera: Jesus é “Deus Conosco”, o Verbo encarnado. No entendimento de Mack, Cristo conhece bem as limitações humanas. Nada contrário à fé de um cristão atento.

Em livros como “A Cabana”, às vezes, o problema são os leitores. Da parte do autor, ele fez o que pôde para contar uma boa história. Conteúdos acessíveis e bons, cenários e personagens interessantes, desfecho surpreendente. O engraçado nisso é os leitores pensarem ser a obra um novo livro sagrado. No próprio volume, há uma campanha para divulgá-lo (é claro!). Eu mesmo o fiz (e estou fazendo agora), mas no aspecto literário, não teológico. Espiritueiros de última hora acham que descobriram a roda, como aconteceu ao lerem clássicos como a série “Operação Cavalo de Troia”, de J.J. Benítez, sucesso até hoje. Pensam saber de tudo dos bastidores vaticanos com “Anjos e Demônios” e ser “O Código da Vinci” um guia turístico-religioso. O mercado literário e cinematográfico, principalmente o estrangeiro, agradece.

Achar que Deus vai baixar do Céu e vir à Terra conversar com os homens é recurso transcendental fácil. Para todos, uma boa notícia pelos olhos da fé: a Trindade já está entre nós. A experiência de Deus acontece todos os dias, nos lugares e formas mais interessantes. A unidade das Três Pessoas se manifesta no próximo, sobretudo nos pobres “em” (não “de”) espírito, nos doentes, nos encarcerados, nos excluídos. A obra divina se mostra na beleza da arte, da natureza. “Mamãe” se deixa ouvir no silêncio. Não adianta tocar-se com a mensagem de Papai, de Jesus e de Sarayu e deixar de olhar em volta, de valorizar a vida. A criação iniciada por Deus continua sob nossa responsabilidade. Cuidar do outro e deixar-se cuidar é atitude espiritual.

Se alguém quiser ouvir Jesus realmente, pasmem, os evangelhos ainda são a fonte mais segura. Neles, Cristo é mais surpreendente do que em “A Cabana”. “Papai” já foi anunciado assim há dois mil anos. Quanto ao Espírito, a Brisa, deste não posso falar, pois acabou a minha inspiração, deve ter ido soprar em outro ouvido.


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

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