Alessandro Faleiro Marques*
Como a literatura brasileira, com exceções, anda vivendo basicamente de
autoajuda e relançamentos, “A Cabana”, mais uma obra internacional,
movimenta as livrarias do Brasil. Depois do sucesso de “O Código da
Vinci” e “Anjos e Demônios”, a religião volta a atiçar a curiosidade do
leitor. “A Cabana”, do escritor canadense William P. Young (Editora
Sextante, 2008. 240 p.), retoma a velha e bem-sucedida fórmula de
colocar frente a frente Deus e o ser humano.
Depois do assassinato da filha, Mackenzie Allen Phillips (ou Mack, como é
chamado no livro), típico americano de classe média, recebe um bilhete
assinado por “Papai”. Não resistindo ao convite, o protagonista (humano)
decide passar um final de semana no lugar indicado, a floresta onde
teria sido morta a caçula. Numa cabana abandonada, que ganha um novo
cenário, digno de uma aparição divina, ele tem um diálogo impressionante
com as três pessoas da Santíssima Trindade: “Papai”, Jesus e Sarayu.
Como em qualquer boa conversa com Deus, Mack passa por um envolvente
processo de questionamento e purificação.
Quem imagina o Senhor de barba longa, camisola branca e com cara de bravo vai decepcionar-se. O livro resgata o Abba,
o Papai de Jesus, algo que, há dois milênios, o Salvador nos ensinou a
fazer, apesar de muitos ainda resistirem à ideia.
Em “A cabana”, “Papai” é uma senhora negra, bonachona, uma mãe boa de
conselhos e de cozinha. Nada que os cristãos de verdade não deveriam já
saber. O Papa João Paulo I, mesmo governando a Igreja por 34 dias, em
1978, deixou como legado espiritual a ideia de Deus Pai e Mãe ao mesmo
tempo. Obviamente, Mack, como a maioria dos fiéis, custa a acostumar-se
com aquela figura. Ponto para o autor. Sarayu, a moça oriental de
atitude leve, é uma boa representação do Espírito Santo. Ela é
jardineira, encantada, livre. Onde ela está, sempre há perfume, ar. A
palavra “espírito” significa brisa, sopro, vento. “O vento sopra onde
quer”, já dizia São João (Jo 3,8), e Sarayu é assim. Em boa parte do
enredo, é uma figura estranha para o convidado. Com feições orientais,
Jesus é um marceneiro, companheiro físico e espiritual de Mack. Em
relação ao Redentor, parece haver menos estranhamento da parte do
visitante. Pudera: Jesus é “Deus Conosco”, o Verbo encarnado. No
entendimento de Mack, Cristo conhece bem as limitações humanas. Nada
contrário à fé de um cristão atento.
Em livros como “A Cabana”, às vezes, o problema são os leitores. Da
parte do autor, ele fez o que pôde para contar uma boa história.
Conteúdos acessíveis e bons, cenários e personagens interessantes,
desfecho surpreendente. O engraçado nisso é os leitores pensarem ser a
obra um novo livro sagrado. No próprio volume, há uma campanha para
divulgá-lo (é claro!). Eu mesmo o fiz (e estou fazendo agora), mas no
aspecto literário, não teológico. Espiritueiros de última hora acham que
descobriram a roda, como aconteceu ao lerem clássicos como a série
“Operação Cavalo de Troia”, de J.J. Benítez, sucesso até hoje. Pensam saber de tudo dos
bastidores vaticanos com “Anjos e Demônios” e ser “O Código da Vinci” um
guia turístico-religioso. O mercado literário e cinematográfico,
principalmente o estrangeiro, agradece.
Achar que Deus vai baixar do Céu e vir à Terra conversar com os homens é
recurso transcendental fácil. Para todos, uma boa notícia pelos olhos da fé: a Trindade
já está entre nós. A experiência de Deus acontece todos os dias, nos
lugares e formas mais interessantes. A unidade das Três Pessoas se
manifesta no próximo, sobretudo nos pobres “em” (não “de”) espírito, nos doentes, nos encarcerados, nos excluídos. A obra divina
se mostra na beleza da arte, da natureza. “Mamãe” se deixa ouvir no
silêncio. Não adianta tocar-se com a mensagem de Papai, de Jesus e de
Sarayu e deixar de olhar em volta, de valorizar a vida. A criação
iniciada por Deus continua sob nossa responsabilidade. Cuidar do outro e
deixar-se cuidar é atitude espiritual.
Se alguém quiser ouvir Jesus realmente, pasmem, os evangelhos ainda são a
fonte mais segura. Neles, Cristo é mais surpreendente do que em “A
Cabana”. “Papai” já foi anunciado assim há dois mil anos. Quanto ao
Espírito, a Brisa, deste não posso falar, pois acabou a minha
inspiração, deve ter ido soprar em outro ouvido.
* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).
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