quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A Guerreira que devolveu a música aos brasileiros

Alessandro Faleiro Marques*

Nestas duas últimas décadas, quem vê cantoras levando multidões a estádios, parques de exposição e casas de espetáculo nem imagina como foi difícil as mulheres conquistarem também o espaço dos palcos. Desde a magnífica Chiquinha Gonzaga e talvez outras que viveram antes dela, enterradas bem fundo pela ignorância histórica, muitas vezes as artistas eram desacreditadas.

Entre as décadas de 1960 e início da de 1980, a história resolveu mudar. Nas ladainhas em latim entoadas pelo coro da matriz de Caetanópolis, em Minas Gerais, ouvia-se a voz da menina Clara Francisca Gonçalves Pinheiro. Com o sobrenome artístico herdado da mãe, passou a ser chamada de Clara Nunes. Depois de muito sucesso no rádio e inspirada por vozes de outras grandes mulheres, como de Carmem Costa, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Ângela Maria, Clara gradualmente se tornou uma espécie de embaixadora da música brasileira para os próprios brasileiros.

A missão da Guerreira veio em uma época particularmente difícil para a nossa música popular. Por motivos nem sempre nobres, nos anos 60 e 70, as canções estrangeiras, sobretudo as estadunidenses, esmagavam muitos talentos nacionais e devassavam os espaços na mídia. Muitos sucessos em português apresentados por artistas do Brasil nada mais eram do que “releituras” das músicas compostas por artistas dos EUA ou da Inglaterra. Por ignorância ou sede de sucesso, muitos tinham pseudônimos em inglês e nessa língua cantavam. Tudo sob a conivência do público, faça-se justiça.

Por outro lado, cheia de alegria, com seus balangandãs, levando o chocalho na canela, e paramentada com o vestido branco da umbanda, Clara Nunes relembrou ao povo: existia samba além carnaval e forró além São João. Com Sivuca, ela contou ao Brasil como era a Feira de Mangaio, tudo ao som de uma contagiante e puríssima sanfona nordestina. Na voz dela, o Brasil ouvia em samba e coral afro um dos mais célebres lamentos nacionais, o Canto das Três Raças. Quem melhor do que Clara poderia interpretar a comparação entre o desfile da Portela e uma procissão?

Alguém agora pode estar lembrando-se agora do papel de Elis Regina. A missão de Elis foi a de refinar a música, lançando novos nomes e um jeito caloroso de interpretar. Por isso, ainda hoje, ela atrai mais o público “cult”. Não é muito o caso de Clara Nunes. Esta também tinha uma interpretação maravilhosa, no entanto fez mais um trabalho de resgate de algo que existia, mas andava esquecido pelo povo. Por providência divina, Clara e Elis viveram na mesma época e partiram cedo, deixando, cada uma a seu modo, uma importantíssima contribuição para a cultura brasileira.

A própria vida de Clara Nunes é a principal mensagem que ela nos dá. De menina do interior a operária e grande cantora popular, a primeira a vender mais de cem mil cópias, quebrando um tabu, a “tal mineira” foi uma legítima brasileira. A moça adotada pelo povo ainda nos quer chamar a atenção para as vozes divinas de homens e mulheres que a mídia insiste em silenciar. Ela nos pede um olhar mais carinhoso para as nossas raízes preciosas nestes tempos de muito barulho, falta de melodia e de criatividade. Quem melhor poderia ser chamada de Guerreira?


* Alessandro Faleiro Marques é professor, redator e revisor de textos. Texto original publicado no site Caos e Letras (www.caoseletras.com).

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